
A série A Cura foi exibida pela emissora Rede Globo entre 10 de agosto e 12 de outubro de 2010. Seus nove episódios da primeira temporada foram escritos por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein. A direção de núcleo é de Ricardo Waddington. A trama é sobre Dimas (Selton Mello), um rapaz formado em medicina que na infância fora acusado de matar um garoto em Diamantina e, por isso, foi morar em São Paulo. Após vinte anos, ele retorna como médico-cirurgião para encarar o passado e as pessoas que não se esqueceram da história. Sua habilidade de realizar diagnósticos impossíveis o coloca numa situação difícil quando Edelweiss (Inês Peixoto) vê muitas semelhanças dele com o antigo médico, Dr. Otto (Juca de Oliveira), quem ela considera ser um santo curandeiro, embora os cidadãos o acusem de criminoso. Com o tempo, Dimas descobre possuir o “mesmo talento de Otto” para curar os enfermos por meio de poderes místicos, que a ciência moderna não consegue explicar. O problema é que os curados começam a morrer e a população passa a culpá-lo. Em paralelo, acompanha-se os eventos em torno de José Silvério (Carmo Dalla Vecchia), um homem inescrupuloso e perverso, que foi amaldiçoado por um indígena no século XVIII, contraiu uma “doença do espírito” e, ao encontrar um garoto que, supostamente, poderia curá-lo, nega-se a ajudá-lo. No fim, descobre-se que na atualidade o Dr. Otto é José Silvério e Dimas, o garoto, e que ambos travam essa luta não resolvida ao longo dos séculos[1].
De modo geral, a estrutura dramática repousa sobre o gênero misto de suspense, drama e sobrenatural e relata a típica estória do retorno do protagonista com um passado obscuro. A trama retrata o ambiente sociocultural de Diamantina, em Minas Gerais, um lugar pacato, onde os costumes e tradições regem as relações e valores dos personagens. Embora o contexto cultural pudesse ser mais bem explorado, o resultado foi um mundo inconfundível atraente para a audiência. Posicionado sob dois eixos diegéticos, as ações do presente são acompanhadas pelo desenvolvimento das origens místicas da cura, ora avançando as explicações, ora apresentando novos mistérios. Dito de outra maneira, se o poder de Dimas constitui-se o elemento nevrálgico das ações no presente, a maldade de José Silvério e o sofrimento imposto a ele servem de referências épicas para explicar o embrião da doença e da cura e o conflito entre os dois no fim da temporada.
Um detalhe válido a ser destacado é como o enredo é bem conduzido no início. A apresentação dos elementos narrativos, a cisão temporal, os lugares, os personagens e as ações encaixam-se estrategicamente e com criatividade, salvo poucas exceções[2]. No entanto, a partir do sétimo episódio, a trama realiza uma virada estranha, uma peripécia inusitada que faz com que os alicerces construídos comecem a desabar, gerando uma reação em cadeia que transforma os personagens em indivíduos perdidos, descolados do universo diegético e desmemoriados em relação às noções dos acontecimentos. Talvez pelo intuito de conceder um final distante de um provável clichê essa reviravolta tenha tentado mexer na estrutura, porém, o resultado foi uma sucessão de ações injustificadas e absurdas, desproporcionais quanto às bases implantadas. Como será visto, da etapa da Decisão à Conclusão (ou do clímax ao desfecho), poucas são as situações sustentadas de modo verossímil e coerente. Diante disso, ao perceber que um aspecto central da trama é o fato de que os ímpetos e ações de perversidade são os elementos que impulsionam as situações dramáticas, é focando neles que pretendo me apoiar para compreender o caos dramático da narrativa nos estágios finais.
A etapa do Início surge com as imagens de Dimas pilotando uma motocicleta ao longo das estradas do interior. Tal qual o protagonista, os telespectadores não sabem o que irão encontrar pela frente. A cidade e a rotina de Diamantina são introduzidas pela fofoca de Dona Nonoca, apresentando Edelweiss, uma bêbada que possui um caso com o prefeito; a Dona Margarida como uma “santinha do pau oco”; Ciro como um homem que perdera todo o dinheiro, mas sempre aparece vestindo coisas caras; e quando ela vê Dimas, revela que ele matara o amigo da escola. Essa ação de bisbilhotar a vida alheia manifesta-se como o primeiro traço de perversidade da série. Além de construir imagens que perpassam somente o crivo da sua interpretação subjetiva da realidade, ela ainda demonstra prazer em realizar a tarefa e divulgar o lado negativo dos cidadãos. Não há comentários positivos sobre ninguém, sua paciência para enxergar o cotidiano e reportar os acontecimentos está submetida a uma habilidade míope para perceber o lado positivo das pessoas (evidenciada pelos apelidos aviltantes). Neste começo, a sua função é épica e prepara os telespectadores para algumas características do mundo inconfundível.
Ainda nesta etapa, Dimas é recebido em casa pela mãe, que o alerta para a forte aversão que as pessoas podem demonstrar, dado o seu passado. O avô, Ciro, interrompe e afirma não acreditar que um descendente de José Silvério seja mal recebido na cidade. O comentário é interessante, pois ao longo do episódio, ficará evidente que o perverso José Silvério matou um companheiro para ficar com o diamante, cortou a língua de um escravo que ousou espalhar a informação e tomou a sopa amaldiçoada de um indígena, a qual continha um “veneno do espírito[3]“. Com isso, a trama adquire traços enigmáticos, o herói é atrelado ao efeito místico do veneno, e cuja relação consanguínea pode instigar a estória rumo a potentes resoluções dramáticas. No hospital, o protagonista revê a sua namorada de infância, Rosângela, e Camilo, o seu atual noivo, que já demonstra ciúmes por ele. Dr. Turíbio, o diretor, aceita contratá-lo como médico, mas o impede de realizar quaisquer cirurgias, principalmente depois de ter presenciado na procissão religiosa, Gildinha, a mãe do garoto morto, acusar Dimas de tê-lo matado. Graças a isso, tem-se a constatação de que o seu passado não fora inteiramente esquecido e permanece vivo na mente dos habitantes. Para incrementar, Dimas é apresentado aos boatos referentes a Otto, percebe que suas habilidades são semelhantes e testemunha o ódio que o médico ainda desperta nas pessoas. Estas são as bases sobre as quais a estória é edificada.
A Perda ou Ruptura, o acontecimento que estremece o estado natural das coisas, começa a ocorrer quando Edelweiss é internada e Dimas a diagnostica. Por conta disso, ele nota que ela vencera um aneurisma na aorta trinta anos antes, algo impossível para a época. Este ingrediente misterioso serve para assentar a situação dramática, afinal, é por meio dele que ela consegue convencê-lo a operá-la novamente (supostamente, Otto teria sido responsável por salvá-la da primeira vez). Pelo modo como Edelweiss é construída, após ver o mesmo poder que a curou materializado em outra pessoa, a personagem não teria como deixá-lo em paz (sobretudo por estar à beira da morte). Por consequência, a pacata Diamantina, de ritmos e rotinas lentas, nunca mais seria a mesma. Dimas trazia consigo a energia que iria desprender pequenas pedras do topo da montanha para iniciar uma perigosa avalanche, engolindo a população inteira. O momento exato em que se dá a ruptura é quando ele aceita o desafio e a leva para a velha casa, onde realiza a cirurgia espiritual. A partir daí, não há mais volta, pois qualquer resultado, positivo ou negativo, os eventos decorrentes são suficientes para quebrar o equilíbrio vigente e engendrar um problema que afeta a todos (não à toa, a cena serve de gancho para o próximo episódio).
Ao alertar a polícia, que chega pela manhã e vê Dimas com a paciente estirada e perfurada por instrumentos cirúrgicos, o instinto perverso de Dona Nonoca provoca um relevante impulso dramático. A simples ação de se meter na vida alheia instaura o novo dilema da cidade e leva à mudança drástica no comportamento e opinião dos cidadãos. Para piorar, alguém entrara na sala do hospital para envenená-la durante a noite e pela manhã, a sua morte foi atribuída à “visita de Deus”. Graças a isso, se antes, Dimas sofria pelos boatos, agora ele tem de lidar com efeitos mais concretos do seu poder. Sobre esta sequência, cabe salientar uma questão controversa. Os personagens sempre criticaram Edelweiss pela aliança com Otto na realização das perversões e maldades, inferindo que ambos matavam os pacientes, falsificavam prontuários e ele jamais curara um enfermo. Afora esses crimes, a peça-chave aqui é a sua convicção no poder de Dimas, porque a única razão de estar viva é ela ter sido curada e, por isso, ela saberia reconhecê-lo por já tê-lo vivenciado. Então, se, no final, o próprio Otto revelou nunca ter curado ninguém, restou a dúvida sobre como ela teria tamanha confiança nessa segunda cirurgia e, muito mais pertinente, como ela teria sobrevivido ao aneurisma da aorta e, com que propósito ela cometeria os atos criminosos. Por esse conjunto de indícios desconexos e confusos, não foi possível observar o ímpeto de perversidade na personagem.
Anteriormente, havia uma simetria na apresentação das opiniões sobre o passado do protagonista, com quatro personagens a favor da sua culpa e quatro que o protegiam, alegando ser um equívoco ou engano por parte dos envolvidos[4]. Após a etapa da perda, o Obstáculo primário com o qual Dimas se depara é a atitude de Dr. Turíbio em relação à cura de Edelweiss. Ele checa os exames e descobre que ela realmente estava curada e que a operação dera certo. Embora seja um médico psiquiatra e cientista, para quem os eventos místicos, geralmente, são irreais, ele aceita a cura sem buscar outras explicações e inicia o processo de impedimento dos objetivos do herói, assumindo a primeira vaga de antagonista. Sua perversidade é percebida na sua indignação pelo acontecimento, por aquiescer o poder de cura e não se conformar. Assim, levado pelo ímpeto perverso, ele realiza uma série de condutas antiéticas[5], não demonstrando remorso em corromper os laudos médicos e utilizar tudo ao seu alcance para freá-lo a qualquer custo, em outros termos, impedir que os antigos eventos se repitam.
Apesar de ser por outras intenções, Dona Margarida também se posiciona como uma força que obstaculiza os desígnios de Dimas. Depois que ele encontra uma foto da mãe ao lado de Otto, ele a pressiona e ela confessa que tiveram um caso, mas nega que ele tenha sido um curandeiro. A importância deste evento é que a falta de argúcia e o comportamento dela criam a lacuna que impulsiona o protagonista (levado também pela fala do avô Ciro, para quem Otto era um ser extraordinário, “um anjo que veio à Terra”) rumo ao recolhimento necessário para que ele perceba a missão a ser cumprida, descarte a sua relutância e retorne com a renovação das energias, como será visto adiante. Sendo uma pessoa extremamente religiosa, a sua perversidade decorre da noção de imoralidade e cumpre-se pelo sentimento de culpa pelo adultério. Afinal, o impulso egoísta de achar que sua decisão é a melhor faz com que ela tente sucessivas vezes desencorajá-lo a ficar e distanciar-se do destino que julga ser idêntico ao do homem que lhe fizera tão mal.
A Divisão ocorre na cena do jantar, onde o Dr. Turíbio e o prefeito (junto com as suas esposas) procuram desconversar os assuntos que envolvem o Otto, pois a estória de Dimas vai adquirindo semelhanças com a do antigo médico e isso faz com que o núcleo converta-se num bloco de resistência ao protagonista. Rosângela continua sustentando o apoio em Dimas e afirma a intenção de checar o exame de Edelweiss, para desgosto dos demais. Em vista disso, a simetria é quebrada e os papeis de cada um são divididos em funções específicas: o Dr. Turíbio, o prefeito Antônio Paulo, Berenice e Graciema como os antagonistas, tendo Camilo como principal adjuvante do diretor do hospital no desvio da verdade; do outro lado, Rosângela segue firme ao lado do amigo, com Ciro apoiando seu destino e Dona Margarida atuando como obstáculo à parte. Dada essa composição, Dimas consolida a imagem de herói relutante, um protagonista temeroso que carrega a descrença na própria capacidade e segurança das suas habilidades. Christopher Vogler (1997) expõe um problema que o herói deve enfrentar: o chamado. Diante dele, Dimas se vê num território situado entre a facilidade da fuga e os perigos (e a emoção) de uma aventura. Portanto, é natural a sua hesitação e, mais ainda, as suas desculpas para evitar maiores infortúnios: ele é persona non grata na cidade, constata subitamente que possui um poder místico sem a noção de seus alcances e limites e, logo na primeira tentativa, sofre os efeitos pela “desobediência”. Sozinho, ele estaria fadado a fracassar.
Por isso que o Auxílio de Rosângela desponta como um elemento primordial. Na cena em que ela descobre a sua intenção de deixar a cidade, ela corre para investigar o caso, faz uma autópsia no cadáver e consegue obter a certeza e a prova do seu poder de cura. Portanto, trata-se de uma virada imprescindível. Primeiro, porque Dimas precisava ser incitado a aceitar o seu destino; segundo, porque ao revelar-lhe as fotos, ele adquire a consciência de seu dom, apesar de seguir relutando; e terceiro, a ação tem repercussão direta no retorno do herói e no consequente confronto com aqueles que se puseram em seu caminho (e também em razão da sua ida encerrar a estória). A esse respeito, é válido sublinhar o contraponto dramático que a narrativa faz ao inserir, nesse momento, a cena em que o escravo fugido encontra o garoto curandeiro salvando uma mulher. Por meio deste encaixe, o protagonista constata o seu poder místico ao mesmo tempo em que os telespectadores são apresentados à sua origem. Isto posto, há mais exemplos de auxílios, como o de Camilo que, motivado por ciúmes e pela indignação de perder o amor de Rosângela, alia-se ao Turíbio para prejudicar Dimas. Seu ímpeto perverso fica evidente pela intrepidez de um homem capaz de lutar com todas as forças pelo que deseja, apesar de demonstrar insatisfação em fazer a coisa errada. Contudo, quando ele descobre que o prefeito encomendara a morte de Dr. Otto, ele passa a desconfiar da família e de todo mundo que criticava Dimas, iniciando o seu processo de transformação em um auxiliar do protagonista. Grande parte da responsabilidade por essa mutação deve-se ao carinho de Rosângela que, mesmo traindo o noivo, sempre mostrou enorme afeição por ele.
Retornando ao momento em que Dimas descobre as fotos de sua mãe com Otto e fica revoltado, pode-se dizer que é uma virada cuja função amplia consideravelmente o conflito. Por consequência do terrível imprevisto e sentindo-se confuso e desnorteado, o herói relutante dá um passo para trás, buscando compreender os acontecimentos. Como exemplo de um estágio na jornada, Christopher Vogler (1997) apresenta a Aproximação da Caverna Oculta, onde o herói, após ter se adaptado ao Mundo Especial, atravessa uma região intermediária e encontra uma zona misteriosa na qual realiza os preparativos para a provação central da aventura. A sua função, portanto, é reservar um tempo para organizar os planos, dedicar-se ao conhecimento do inimigo e fortificar-se, incluindo a possibilidade de desenvolver relações de romance, ligando o herói à amada. Em Joseph Campbell (2007), a etapa é denominada de Ventre da Baleia, ou seja, a ideia de que a passagem do limiar mágico é um caminho para a esfera do renascimento, “uma imagem simbólica do útero”, onde o herói é jogado no desconhecido, sofre uma metamorfose e é revivificado pela lembrança de quem é e o que representa. Sobre isso, extenuado pelas recentes descobertas e complicações que seu poder misterioso lhe trouxe, Dimas toma a decisão de se isolar de todos no local em que costumava acampar quando criança, uma grande gruta de pedra no mato. Rosângela vai atrás e reafirma a crença de que ele é um ser iluminado, reacendendo a vontade nele de seguir a sua trajetória. A fase da caverna evidencia a conexão espiritual e o fortalecimento da mútua confiança, por isso, grande parte dessa resolução ocorre pelo reforço dos laços românticos entre ele e a sua auxiliar. Se antes o casal já havia se beijado, a partir desse instante, Rosângela não mais impediu o coração de aflorar o sentimento que nutria por Dimas, tanto que, no episódio seguinte, eles dormem juntos. Energizada pela aura do amor, ela intensifica os confrontos com o pai e a mãe, abalando as relações que, até então, eram de pequenas contrariedades.
Tendo isso em vista, é interessante observar que esse retiro de Dimas ocorre, não despropositadamente, no mesmo local onde José Silvério encontrara o garoto curandeiro pela primeira vez, sugerindo que o retorno à essa localidade sagrada iria conferir-lhe a coragem e as forças necessárias para enfrentar as adversidades e avançar a sua missão. Neste contexto, pode-se alegar que a cura de Dimas exprime a essência do ímpeto de remediar a perversidade instaurada por José Silvério, no passado, e continuada por Otto, no presente (considerando que o protagonista seja, de fato, a reencarnação do garoto[6]). Afinal, por ser estranho à cidade, Dimas não fora tocado pela sua perversão, isto é, pelo impulso que “dominou” a mente dos habitantes, transfigurando-os em seres moralmente degenerados. Sua chegada simboliza a aura mística da anti-perversidade, o estímulo que retornou para livrar Diamantina de uma vez por todas das maldades de José Silvério (a sua cura é real e tinha começado a desfazer o mal quando Graciema voltou a andar). No entanto, apesar da origem dessa anti-perversidade poder ser verificada quando o garoto nega ajuda a ele, a cena peca em demonstrar com mais clareza as razões para a rejeição, a despeito de se poder presumir que ele captara o cerne da aura perversa e tenha decido não partilhar da culpa por mantê-lo vivo.
Uma surpresa ocorre ao término do quinto episódio. Ciro abre o cadeado de um portão e entra em um velho casarão para se encontrar com Dr. Otto. O alvo das histórias é estrategicamente materializado na trama para engendrar respostas acerca das opiniões dos inimigos, afinal, enquanto tratava-se de boatos, o choque de forças permanecia num limbo conjectural, com cada personagem cedendo sua versão do passado. Estando vivo, eles podem ser finalmente desmentidos e os culpados terão de revelar as suas máscaras. Desta forma, a princípio, pela forma como Otto surge, supõe-se que ele irá reposicionar a simetria no embate contra os Diamantinenses. O seu comportamento e fala validam a imagem de um sujeito injustiçado pelos perversos opositores, intensificada pela firme convicção de Ciro na sua santidade ao exibir o vídeo para Dimas e Rosângela[7]. Graças a isso, o casal se vê aprisionado num tenso campo de batalha, cujo ódio dos personagens é acentuado: de um lado, Graciema conta que Otto a deixara paralítica; Camilo descobre o segredo de seu pai e Dona Margarida se descontrola ao vê-lo na sua frente, sem pagar pelos crimes que cometera; e do outro, na cena em que Dimas o encontra no casarão e o pressiona por ter desaparecido e forjado a própria morte, Otto se defende, declarando ter sido perseguido pelos verdadeiros corruptos e culpados e se oferece para ser entregue à polícia, caso não seja justo de confiança[8]. Diante deste panorama, mesmo sendo a sua presença inesperada, ela pouco altera ou abala os alicerces definidos na divisão.
O evento que anuncia a nova configuração na relação dos personagens, ou seja, a segunda Ruptura, acontece na cena em que Dimas testemunha a presença dos capangas ao lado de Otto e se recorda de que foram eles que o agrediram. Não há outra Divisão, pois todos se mantêm alinhados aos mesmos papéis, malgrado seja revelado que eles estavam certos. Desta maneira, os efeitos da ruptura recaem mais sobre a intensificação dos obstáculos (e a introdução de Ciro como auxiliar direto do antagonista), já que, dali em diante, além de continuar lutando contra a opinião negativa dos cidadãos, Dimas terá de combater a perversidade do seu arquirrival místico, José Silvério, na pele de Otto. É neste ponto que a trama dá a guinada estranha e as ações conduzidas pelo vilão tornam-se incongruentes e inverossímeis em relação ao mundo inconfundível e às suas regras. A fim de exemplificar, comentarei primeiramente as falhas na estrutura dos personagens para, em seguida, descrever as últimas etapas e avançar sobre a perversidade de Otto.
De acordo com a análise, o principal erro da trama é a falha no eixo temporal do evento que envolve o sumiço de Otto, que já surge de maneira implausível[9]. Todos os personagens referem-se à sua “morte” como tendo acontecido trinta anos antes e Dimas fugira da cidade vinte anos antes. Logo, toda a infância do protagonista em Diamantina deveria ter ocorrido na ausência do médico, o que não ocorreu. Quando Gildinha diz que sabia que Otto é quem causara a morte de Cristiano, seu filho, imediatamente, nota-se o defeito, já que o garoto era da mesma idade de Dimas e a sua morte fora a razão de ele ter sido exilado (ela chega a revelar que foi ameaçada para acusá-lo[10]). Portanto, Dr. Otto ainda estava realizando os tumultos pela cidade bem depois do período que a trama considera o seu sumiço e se apoia para justificar os fatos narrativos. Outra questão são as mortes mal resolvidas de Edelweiss, Wesley e Genival[11]. Quanto à primeira, por que Otto mataria Edelweiss, a pessoa que o defendia cegamente para todo mundo? Ela não teria sido uma forte aliada para se conquistar a confiança de Dimas? Quanto à situação de Genival e Wesley, numa sequência, Dr. Otto teria convencido o homem que desistira de matá-lo por fidelidade a atirar no seu próprio filho e, então, por amor a uma causa mal elaborada e justificada, conseguiu que ele pegasse a sua arma e cometesse suicídio. Tudo isso sem indícios concretos para sustentar essas ações, ferindo a verossimilhança das suas motivações dramáticas. E mais, bem próximo ao clímax, outra peripécia amplia a incongruência nessa reta final. Dr. Otto e Ciro conversam sozinhos no velho casarão e ambos agem como se os seus planos realmente envolvessem a “cura” do médico, talvez para disfarçar a verdadeira intenção dos telespectadores, mas às custas de mais um forte dano na inteligibilidade da trama. Mais tarde, revela-se que o objetivo deles sempre fora o Dr. Otto morrer nas mãos de Dimas. Logo, por que eles agiriam com base nessa busca pela cura se, ao esconder os seus verdadeiros propósitos, isto acabou mostrando-se mais contraproducente do que as suas intenções reais?
A Decisão inicia-se pelo encontro de Rosângela com Otto na rua. Ao reconhecê-lo, ela resolve segui-lo e o encontra no casarão, onde o antagonista assume a autoria dos crimes cometidos, puxa uma arma para raptá-la e liga para Dimas vir buscá-la. Quando Dimas chega, Otto lhe propõe um acordo: ele assume os crimes e solta a Rosângela em troca da cura[12]. Pouco depois, Ciro chega e revela que José Silvério reencarnara em Otto e, por isso, acredita nele e o segue. Então, o avô pega a faca e começa a ameaçá-la para que a operação espiritual seja iniciada. O protagonista se aproxima e, prestes a perfurá-lo, reluta diante da tarefa. Neste instante, Ciro passa a incitá-lo a assassinar o Dr. Otto, expressando o plano da dupla. A cena corta para o passado, onde José Silvério agoniza e implora ao garoto para ser morto, ameaçando emparedar sua mãe. Finalmente, o garoto cede ao impulso da perversidade e enfia a faca no pescoço dele, porém, antes da agonia do veneno ser encerrada, o cruel homem deleita-se por ter passado a maldição ao garoto (não há explicação de como ele obteve essa informação e, tampouco, a preferência pela morte frente à cura que tanto buscava). No presente, a cena se repete com Otto rogando para que Dimas o mate. Da mesma forma, não fica evidente o propósito de ele preferir a morte e, principalmente, sobre o motivo de se repetir a situação (ele não teria passado a maldição ao garoto?). Contudo, desta vez, a relutância de Dimas mostra-se uma decisão sábia, já que o resultado seria um caminho na direção da perversidade, a qual ele aspira combater. Com raiva, Otto o ataca e, em seguida, perfura o peito de Rosângela. Quando Dimas consegue segurá-lo, num ato de insanidade, Ciro pega uma tábua de madeira e o acerta na cabeça, engendrando mais uma ação improcedente[13]. Pouco depois, enquanto o herói desperta, a perversidade do avô é exposta no relato aos policiais, ao dizer que o neto enlouquecera e tentara matar a Rosângela aos gritos de que era a reencarnação de Dr. Otto. Ao término, cumpre-se a permanência do desequilíbrio instaurado na ruptura, tem-se a prisão de Dimas e a culpa pelo ataque a ela recaindo estritamente sobre ele.
Por fim, a Conclusão é representada pelo estado final da situação dramática e o seu possível recomeço. Dias depois, Dimas encontra-se numa penitenciária e Camilo o visita, dizendo que irá tirá-lo de lá para ele curar a Rosângela e os dois irem juntos atrás de Otto para matá-lo. O herói, imbuído das últimas experiências desastrosas, expressa de novo a sua relutância e desliga o telefone. Na cena seguinte, Rosângela está internada em coma na clínica e, subitamente, abre os olhos e contempla a câmera com uma feição inusitada. Possivelmente, ela contraíra a perversidade e poderia ser uma futura auxiliar do vilão ou imbuiria o protagonista de forças especiais, já que teve acesso aos segredos do inimigo. Pelo fim do ciclo, percebe-se que a série tinha intenção de uma segunda temporada, introduzindo um gancho poderoso a ser desenvolvido nas próximas etapas.
À primeira vista, Otto deixa transparecer uma perversidade referente ao cinismo e à sordidez de um homem hábil na arte da atuação e da mentira. Com bastante tempo para planejar o encontro com o filho e fazer com que ele o mate, sua intenção demonstra um sutil sadismo, no sentido de querer conquistar o que deseja ao mesmo tempo em que causa dor ao outro. Ele deturpa os boatos negativos para confundir a cabeça de Dimas e retirar prazer dessa tortura. Quando sua máscara cai, o vilão gaba-se de não ter deixado pistas e ter enganado a todos, deleitando-se com a sua esperteza e genialidade. Dotado da noção de que é a reencarnação de José Silvério, Otto preparou muito mais do que um mero ritual para deixar este mundo; ele precisava revelar o seu segredo. Se em trinta anos (ou vinte), ele manteve-se tranquilo e com a agradável sensação de ter deixado um rastro maligno sem pagar nada por isso, o ímpeto da perversidade passou a consumi-lo, transformando a tranquilidade em pensamentos atormentadores. O seu retorno, portanto, está atrelado à sua submissão e à falha em reprimir os impulsos perversos; não bastava perpetrar os crimes e sair ileso, os fantasmas dos mortos sempre ressurgem para flagelar o espírito dos culpados e fazê-los confessar e vivenciar o mesmo pesadelo. Assim como no conto da introdução, o ímpeto da perversidade em Dr. Otto manifesta-se sem causas tangíveis, ele perpetra essas ações malignas porque, no fundo, sente que não deveria e deixa evidente que não há um princípio inteligível por detrás de suas intenções.
Para concluir, a série apresentou uma trama envolvente e de enorme potencial. O tema de misticismo é algo que sempre provoca curiosidade e fascínio nos espectadores. O mundo inconfundível foi construído, inicialmente, com elementos interessantes e uma conjuntura de personagens planos coesa e muito atrativa. Pelas etapas analisadas, pode-se observar que a introdução e a ruptura foram bem elaboradas e prepararam o terreno para as ações de perversidade alavancarem a trama. A divisão recortou os personagens em seus respectivos papeis e foi de suma relevância para criar a atmosfera de suspense e mistério que rodeava Dr. Otto, incluindo os aspectos pertinentes quanto à relutância do herói e as funções bem cumpridas dos obstáculos e auxiliares. O maior problema na sua estrutura dramática foi detectado a partir da segunda ruptura, com a virada inusitada que fez ruir as relações tão bem erigidas anteriormente e passou a apresentar inúmeras ações confusas, incongruentes e nada convincentes. A perversidade atrelada a elas, auxiliou na tarefa de iluminar as diferentes manifestações do comportamento e da essência humana que, por impulso, transformam-nos em seres degenerados, desleais, indignos e imorais. Por meio deste ângulo de análise, tentei dar um sentido, sobretudo, às ações que giraram em torno do protagonista e do vilão, as quais, sem a noção de que a perversidade ocorre por ímpetos irrefreáveis e incônscios, tornam-se descabidas e conflitantes com os reais objetivos de ambos (não houve movimentos ou viradas para justificar e/ou reposicionar as suas intenções junto à trama e prover mais respostas sobre o embate travado ao longo dos séculos). Por último, este misterioso conflito espiritual não conseguiu ser encerrado na sua primeira e única temporada, deixando os telespectadores sem possíveis respostas. Entretanto, ao verificar que o herói foi injustamente aprisionado, um fato é mais do que certo: amanhã, ele estará livre, mas onde?
[1] A trama e as curiosidades estão no Memória Globo, disponível em: http://glo.bo/3uVZtFe.
[2] Um exemplo é a fofoqueira na janela da loja de artigos gerais. Ao longo de toda a estória, ela surge conversando ao telefone e maltratando os clientes, sempre realçando o seu ódio pelos turistas, embora seu negócio pareça ser voltado, justamente, para essa clientela. Em um dado momento, ela arranca a mercadoria das mãos de uma cliente e a expulsa da loja; em outro, desencoraja a cliente a comprar um produto, alegando que está caro demais ou que o material é de má qualidade. Apesar do evidente tom cômico, a sua postura é incoerente e inverossímil.
[3] Este é o momento em que ocorre a ruptura na narrativa do passado, visto que afetará praticamente a vida de todas as pessoas que José Silvério encontrar pelo caminho (elas morrem por relação direta e indireta com a doença).
[4] Essa apresentação simétrica é constatada pelo que os personagens dizem nas situações iniciais. A favor da culpa de Dimas estão Dona Nonoca, Dr. Turíbio, Camilo e Gildinha, a mãe do garoto morto; e os quatro que o defenderam são Dona Margarida, o avô Ciro, Rosângela e Edelweiss.
[5] Entre elas, pode-se apontar o plano com o Camilo de mentir para a paciente acerca do seu quadro clínico; sua visita ao Dimas e a ação de incitá-lo a imaginar que tivera um ataque psicótico, receitando-lhe medicamentos psiquiátricos sem que ele precise; quando a paciente morre assassinada, ele fala que precisa colocar no óbito algo relacionado ao seu coração; e quando tudo parece perdido, ele vai ao delegado com o desejo de internar o herói à força.
[6] Para fazer essa alusão, baseio-me nas informações construídas inicialmente, de que Dimas nasceu depois que Otto deixara a cidade e, portanto, que ele jamais o conhecera, e que ele é a reencarnação do garoto curandeiro, embora os eventos finais sejam conflitantes com essas duas posturas.
[7] No vídeo, Otto aparece numa celebração junto aos personagens que o condenavam como um ser abominável. Ciro explica que eles só conseguiram alcançar os seus objetivos graças ao Otto (o prefeito deve sua candidatura a ele e Dr. Turíbio conseguiu a vaga de diretor do hospital). Além disso, ele afirma que Otto é quem foi a vítima e que teria se retirado ao descobrir que os outros eram corruptos e se juntaram para acabar com ele.
[8] No casarão, Otto diz a Ciro que Dimas precisa conhecer a verdadeira história e é advertido pelo amigo de que seria perigoso. Eles estão sozinhos e planejando o avanço dos objetivos, então não haveria necessidade de mentira entre os dois (embora seja visível que o plano é omitido por causa dos telespectadores). Quanto a isso, se no final, conclui-se que o tempo todo a história contada pelos outros a Dimas era a versão genuína, do que Otto estava se referindo como a verdadeira história?
[9] Numa cidade do interior, como pode o Dr. Otto ter desaparecido por vinte anos (ou trinta) sem deixar vestígios e visitando sua propriedade frequentemente, além de continuar mantendo sua casa e o pagamento de impostos em dia? Sem contar o avô Ciro, ninguém buscou a posse dela ou teve acesso ao inventário do proprietário?
[10] Mesmo tendo sido ameaçada na época para culpar Dimas pela morte de seu filho e “abafar o caso”, por que motivo, vinte anos depois, ela iria chamá-lo de assassino aos berros, no meio da multidão, durante uma procissão religiosa na rua? E por que ela iria implorar, aos prantos, para os policiais prenderem-no quando ele curara Edelweiss na cabana?
[11] A morte de Graciema na sala do hospital também é bastante incoerente. Por qual motivo ele iria arriscar arruinar os seus planos e ser visto antes do tempo para tirar a vida de uma pessoa que em nada o atrapalhava?
[12] Aqui, ocorre mais um problema. Depois de a polícia cercar o casarão, no momento em que a porta é arrombada, os dois, estando no porão, escutam o barulho e os passos dos policiais vindo do teto. Contudo, Otto se diz esperto e fala que eles estão na casa de Dona Margarida. O delegado checa o casarão e não há ninguém, mesmo que as escadas para o porão estejam abertas e desimpedidas. Como eles ouviram a chegada dos policiais e viram as sombras pelas tábuas?
[13] Pela disposição dos acontecimentos na cena, se Ciro queria que o seu neto matasse Otto, por que ele interromperia a briga? Ele não deveria intervir para ajudar Dimas ou, no mínimo, facilitar o cumprimento do objetivo da dupla?