
Um pescador saía de madrugada todos os dias, pegava seu pequeno barco e se punha a remar oceano adentro, na esperança de trazer o jantar para sua família. Não, não era um homem velho, tampouco tinha um jovem rapaz para ajudá-lo ou gostava de beisebol. Esse pescador, o meu pescador, era mais jovem, possuía uma enorme rede capaz de capturar vários peixes ao mesmo tempo, mas nunca a usava. Preferia pescar com a sua vara de bambu já velha e gasta, atirando-a inúmeras vezes ao mar. Ele era também introvertido e casou-se com uma mulher por pressão familiar. Sendo assim, o único momento em que se sentia feliz era quando o sol surgia no horizonte e ele podia ver as gaivotas mergulhando para se alimentar. Sentia a alegria pulsar no peito ao contemplar a facilidade das aves marinhas para capturar o tão difícil e esguio peixe.
Em uma dessas viagens, enquanto aguardava os peixes morderem a isca, uma gaivota sobrevoou o barco e lentamente pousou em sua borda. Queria cumprimentá-la, mas a solidão dessa atividade profissional aliada ao sabor constante de sal na boca, endureceram seus lábios, enrijecendo a capacidade de fala. Mesmo assim, parou imediatamente o que estava fazendo e fitou-a com um brilho nos olhos. Um longo tempo se passou e ele voltou a lançar a isca na água. A gaivota pareceu entender a sua admiração e a dificuldade em iniciar um contato. Ela, então, deu três pequenos pulos para se aproximar dele e iniciou uma conversa. Obviamente que o pescador levou um baita susto e, meio bobo, ficou sem saber o que dizer.
— Bom dia, pescador… Pegou alguma coisa?
— Huh? S-s-im. Ma-mas c-como você ‘tá conseguindo falá?
— Sempre consegui.
— E p-p-p’quê só agora fez isso?
— Vejo todas as manhãs, meu bom pescador, que o senhor olha para mim e para minhas companheiras e abre um lindo sorriso.
— É p’que eu admiro a sua beleza. Gosto de vê vocês voando, batendo suas asas e mergulhando pá pegá os peixe — o pescador acalmou-se um pouco.
— Obrigada.
— Eu q’tenho agradecê. Sem a sua presença, minha vida não tem sentido. Pesco prá me sustentá, mas a sua companhia me faz sentir vivo.
— O senhor é muito generoso. Por que nunca veio conversar conosco?
— Como q’eu ia adivinhá que vocês fala?
— Era só tentar, não iríamos ignorá-lo.
— Num dá, num tenho coragem.
— Deixaria a sua vida inteira passar sem ao menos tentar?
— Sim, fico morrendo de medo.
— É por isso que não usa a grande rede? Para demorar mais tempo e ter desculpa de vir até aqui nos observar?
— Iss’mesmo. Além do mais, meu pai usava a rede e os peixe acabava estragando. Aprendi com vocês a pescá apenas o que se vai comê.
— Uma atitude muito digna da sua parte.
— P’que você me escolheu pra falá?
— Você é um homem bom, simples, que pensa nos outros, apesar de não saber muito das coisas.
— Agradecido. Mas já’prendi um monte de coisa nessa vida.
— Menos a dizer o que está em seu coração.
— Porfavô, não me julgue. Você não sabe o que é gostá de algo e sabê que nunca vai ter.
— Pelo contrário, sei muito bem.
— Então me diga.
— Há, entre nós, gaivotas, uma regra. Somos proibidas de conversar com humanos, a menos que eles iniciem a conversa. Essa regra existe há muito tempo e, que eu saiba, nenhuma gaivota jamais ousou desrespeitá-la.
— P’que você quebrou a regra?
— Porque pretendia ouvir a sua voz ao menos uma vez antes de morrer. Você nunca percebeu que eu venho aqui todo nascer do sol e permaneço mesmo depois de ter comido o suficiente? Eu sempre carreguei a esperança de que você viesse falar comigo.
— Eu também. Tem dias que eu nem preciso pescá e venho pro mar.
— Quando estiver em dúvida, reúna coragem e diga o que sente! Não há como perder o que não se tem além das incertezas.
Neste momento, uma brisa fria bateu no rosto do pescador, fazendo-o acordar, assustado. Rapidamente, ajeitou-se no assento e enxugou os olhos na camisa encardida. Ele caíra no sono ao contemplar as gaivotas e passou o dia todo adormecido. Era fim de tarde e à sua volta via-se apenas a solidão do oceano. Seu imprudente sono o levara para alto mar e agora não tinha condições de enfrentar as correntes com o velho e esburacado remo. A noite logo cairia e ele estaria longe demais da costa. A situação só não era mais desesperadora, pois à distância viu um bando de gaivotas mergulhando para pegar os últimos peixes do dia. Ele poderia ser salvo, mas teria de arriscar. Tentou berrar, mas algo travou a sua voz fundo na garganta. Era uma ideia absurda. Então, sem o controle do barco e prestes a encarar a imensidão do violento oceano, só lhe restava esperar por um milagre. Ao virar o rosto para avistá-las uma última vez, entre elas, o pescador podia jurar que uma estava apenas boiando nas ondas, fingindo pescar, observando-o continuamente. E ele não conseguia deixar de olhar para ela, embora não soubesse o que fazer. Tinha tempo suficiente para raciocinar e agir, mas nada fez. Não é que ele não quisesse ser salvo, ele apenas não sabia o que dizer…
(Texto escrito em meados de 2012)