A Grande Lista de Dona Ilda

Dona Ilda era uma mulher bastante idosa e solitária. Desde a morte do marido, há vinte anos, fechou-se para o mundo, passando a viver sozinha, reclusa em seu apartamento. Em dias ensolarados, caminhava lentamente pela praça depois do almoço, lia seus livros prediletos sob a sombra de uma frondosa figueira e antes de retornar para casa, fazia questão de ver o pôr do sol na praia. Em dias nublados ou chuvosos, gostava de jogar paciência com o rádio ligado, ouvindo músicas antigas e lembrando de sua juventude tão feliz. Nas datas comemorativas e aniversários, escrevia, com sua mão já cansada, longas cartas para pessoas que há muito se foram e depois as jogava fora. Antes de dormir, gostava de assistir televisão, apesar de quase sempre perder o final dos programas.

A solidão é algo com que todos nós convivemos em algum momento de nossas vidas. Pode ser passageira, com duração de dias ou semanas, ou mais longa, como no caso de Dona Ilda. Seu problema era sua incapacidade de se desvencilhar do marido, o único homem que amou em toda a vida. Desolada e perdida, para agarrar-se às lembranças e os momentos felizes do passado e como forma de continuar viva, tomou uma decisão. Todo dia, ela pegaria o seu agora velho caderno de folhas amareladas e escreveria uma palavra ou uma curta frase sobre algo que amava nele ou no relacionamento dos dois. E assim, sua lista ganhou o título de “As Coisas Que Eu Mais Amo no Mundo”.

O início se mostrou até fácil, havia centenas de coisas que ela amava em seu marido. Se tinha dúvidas, sua mente rapidamente preenchia lacunas e dava um jeito de determinado pensamento se encaixar nas regras estabelecidas. Aos poucos, as páginas do caderno foram sendo marcadas com os mais variados itens dentro dos mais inimagináveis temas (Dona Ilda aproveitava que ninguém iria ler sua lista para escrever coisas bem picantes). Entretanto, chega um momento em que a criatividade humana começa a falhar. A formação de novas ideias começa a ser um processo lento, doloroso e difícil. Por conta disso, sua lista passou a ser uma tarefa semanal; depois, quinzenal; e com muito sacrifício, já numa idade avançada, mensal.

Ela procurava a todo custo vivenciar a experiência da companhia do marido. Os passeios pela praça buscavam trazê-lo para os bancos de concreto, onde ele jogava damas todos os domingos com amigos. Ela lia sob a frondosa árvore, exatamente no ponto onde ele a pedira em casamento, buscando vislumbrar uma imagem, um devaneio, uma lembrança que pudesse lhe dar uma marcação nova no caderno. E jamais retornava para casa sem testemunhar a beleza do pôr do sol, cuja recordação da lua de mel era um gerador vigoroso de itens para a lista. As músicas antigas do velho rádio haviam praticamente exaurido os seus potentes combustíveis poéticos, mas ela continuava insistindo. O exercício de escrever para os mortos, na tentativa de rememorar mais estórias e manter a mente afiada durante a velhice, tornou-se uma atividade repetitiva, monótona, sem graça, desprovida de sentimentalidades e prazer. Então, sem que percebesse, o tempo alcançou as céleres asas da imaginação de Dona Ilda. Mas antes de cortá-las, concedeu-lhe uma última valiosa e proveitosa visão.

Uma noite, logo depois de posto o astro-rei por trás da grande montanha, e a brisa fria da praia tocar o seu rosto, Dona Ilda percorria os trilhos da memória, quando, de repente, chegou a um ponto distante, mas tão distante, que sua mente evocou uma cena de sua juventude. Dona Ilda, ou melhor, a garotinha Ilda, era uma jovem tão cheia de vida, sonhava em viajar e conhecer os quatro cantos do mundo, estudar e aprender mais sobre a natureza e outros povos, conhecer o amor nas suas diferentes formas. Essa visão tocou-lhe a alma e, percebendo o seu erro, começou a chorar. A partir do dia seguinte, ela decidiu não mais caminhar pela praça e terminar os dias na praia. Iria ficar o dia todo em casa, remoendo-se nas dores da saudade misturadas às dores do arrependimento. Além disso, passou a se alimentar muito mal e a dormir pouco, o que foi, obviamente, fatal para sua idade, vindo a falecer dois dias antes da data prevista para a próxima marcação no caderno.

Talvez se Dona Ilda tivesse descoberto antes ou alguém pudesse tê-la avisado. O grande problema e a maior dor dos solitários é que eles não têm ninguém nem para criticá-los, quanto mais aconselhá-los. Por favor, não julguem a Dona Ilda. Ela teve os seus motivos, deixou-se ser levada pelo amor e pelo carinho que sentia por outra pessoa, apesar de ter se privado da felicidade. As caminhadas, junto às lembranças, embora trouxessem sentimentos bons e até positivos, de maneira geral, não a deixavam evoluir e experimentar sensações por si própria. Elas impediam-na de realmente viver. Em sua extensa lista, Dona Ilda colocou tudo que mais gostou na vida, mas somente em relação a outro indivíduo, nunca a ela mesma. Portanto, é imprescindível que coloquemos nós mesmos em primeiro lugar na maioria absoluta das situações que envolvem nossas vidas. Talvez, ao fazermos  isso, consigamos nos livrar da solidão ou melhorar um pouquinho essa conturbada trajetória em direção aos nossos destinos. E você, leitor, se estivesse na posição de Dona Ilda e eu te pedisse para fazer uma lista das coisas que mais ama no mundo, quantos itens, cadernos ou anos você levaria até escrever “você”?

(Texto escrito em meados de 2013)

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