As Culturas Juvenis: A Espera Como Participação Social e Autoafirmação no Filme Waiting for B. (2017)

O filme Waiting for B. (2017) é um documentário dirigido por Paulo Cesar Toledo e Abigail Spindel, que retrata o “breve” encontro de um grupo de jovens de São Paulo, aguardando na fila, por cerca de dois meses, pelo show da cantora pop norte-americana Beyoncé no estádio do Morumbi, em setembro de 2013. A obra é um registro sincero da paixão incondicional de alguns fãs pela grande artista, refletindo também as relações que ocorrem entre eles. Em cada parte do filme revela-se um modo diferente com que esses jovens subvertem os textos e o comportamento da cantora, gerando para si valores emocionais próprios, culminando numa produção de sentido voltada para suas próprias experiências enquanto reforça suas identidades.

O filme não se deixa levar pela aparente “superficialidade do ato”, pelo contrário, busca desvelar nas ações mais simples e levianas daquele cotidiano, a profundidade de temas que ainda geram enorme tensão social como o preconceito racial, a homofobia, as lutas de classes, etc. Assim, abdicando-se do foco em um fascínio vazio, os depoimentos nos levam a descobrir melhor quem são essas pessoas e logo nos tornamos mais interessados por elas. A paixão pela cantora norteia suas ações e motivos, porém ela se torna algo quase secundário quando as dificuldades da vida e os sofrimentos impostos pela sociedade vêm à tona. Percebe-se com grande clareza um grupo cujos desejos não são complexos tampouco inatingíveis – eles clamam por aceitação pública e a realização de seus sonhos mais concretos, como uma vida menos desgastante e mais digna.

Ao olharmos atentamente para esse grupo sob vários ângulos, passamos a compreender certos aspectos de sua organização. Por meio da observação de suas fachadas culturais, descobrimos o uso de expressões próprias e códigos particulares, com os quais se identificam entre si e realizam sua participação social. As cenas em que são filmados em suas residências revelam certo vazio e distanciamento, como se algumas peças necessárias para um bem-sucedido encaixe social não pudessem ser encontradas ali. No momento em que Junnior Martins maquia Jefferson Coelho (Melina), ambos falam do ressentimento e da mágoa provocados pelas suas famílias e as marcas indeléveis e os traumas armazenados no cerne de suas personalidades. Junnior relembra, inclusive, do episódio em que sua mãe pedira ao seu tio policial que lhe desse uma surra para fazê-lo aprender a ser homem. Melina ainda complementa falando do preconceito sofrido “no mundo hétero, por ser gay e dentro do mundo gay, por ser negro”; somente maquiada e vestida como Melina McLean se sente totalmente realizado. O choque se dá quando retornam ao acampamento; eles se tornam indivíduos completamente diferentes e, em meio a conversas rotineiras e coreografias muito bem ensaiadas, se tornam mais leves, naturais, satisfeitos pela presença dos outros companheiros, confiantes em ser o que são, sem a necessidade de disfarces no comportamento e na fala.

Em um nível um pouco inferior em abordagem, o filme discute também fatores relativos à classe social dos integrantes do grupo e as relações com o trabalho para ajudar a sustentar suas famílias. Um exemplo se vê na espera para conhecerem os dançarinos da Beyoncé. Em frente ao hotel, Gabriela Electra explicita que é injusto as pessoas que nem são fãs terem um acesso maior (ou pelo menos mais facilitado), somente por terem dinheiro. Em outra passagem, Junnior conversa com sua mãe sobre o pagamento referente às suas férias, o que lhe confere a qualidade de ser responsável e manter suas tarefas em dia (distanciando-se do estereótipo de pessoas que não têm nada de produtivo para fazer), mesmo enfrentando as dificuldades diárias.

Se as culturas juvenis florescem e ganham proeminência nos momentos de lazer, com este grupo não seria diferente. A espera, o ócio, o tédio e o não fazer nada tornam-se primordial e passam a significar justamente o oposto nessa situação, uma vez que, reunidos, reforçam seus estilos, reafirmam suas identidades e atuam nestas práticas comunicacionais. Os sinais evidentes dessa “marginalidade normativa” refletem os significados sociológicos desses fãs e adquirem força, principalmente, ao transformarem o Morumbi, o “templo da heterossexualidade”, em um acampamento gay. Na noite do jogo de futebol, obviamente, não poderiam ter continuado na fila e assim as relações se invertem novamente. Pelas palavras de Bruno Brunet percebemos a noção que eles têm de que o lugar não lhes pertence. Os “donos” haviam chegado, empurrando-os para um local mais afastado. Nesse momento, notamos uma mudança extrema em seus comportamentos. Como deve acontecer em várias situações cotidianas ocorridas fora do grupo, eles procuraram minimizar ao máximo os trejeitos na fala, possivelmente para evitar conflitos com os torcedores. Quando conversaram com um deles, seu linguajar e seus gestos eram completamente diferentes, revelando, inclusive, feições sisudas e fechadas. Visivelmente, eles não se sentem à vontade diante de pessoas diferentes e é nesse contraste entre grupos que o documentário acerta na mosca, desnudando toda a importância e potência da formação desse grupo para seus integrantes. É evidente que a paixão pela cantora é crucial nesse processo, mas mais significativo para a vida desses jovens é justamente a possibilidade de consolidarem suas identidades com a ajuda uns dos outros e se autoafirmarem perante a sociedade; a questão, por conseguinte, é muito mais profunda que uma “mera espera” – o grupo está lutando para ser aceito socialmente e esse “espaço social” conquistado, mesmo que temporariamente, diz muito sobre suas intenções no processo natural de socialização dos indivíduos.

Quanto à questão do DIY (Do-It-Yourself), uma prática comum entre os grupos juvenis para gerar suas próprias fachadas culturais, podemos citar o vestido com que a Gabriela Electra se apresenta na casa noturna. Ela pede para a costureira fazer apenas o collant, pois as pedras e as estrelas são as próprias dançarinas que fazem e isto com bastante cuidado para que fique perfeito, do contrário elas não seriam um dos covers mais parecidos do Brasil, como ela mesma afirma. Vitor Lopes produz seu próprio figurino, branco com estrelas douradas, a fim de impactar os dançarinos da cantora. Em outra parte, Charlles experimenta um vestido dourado, possivelmente confeccionado pela garota que o ajuda a vesti-lo e fala da sensação de assistir ao show fantasiado. O DIY é fundamental nas culturas juvenis, pois lhes permite adicionar um elemento de particularidade, tornando-as únicas.

Como descreveu Sandvoss ao apontar os estudos de Fiske, os fãs podem transformar os ídolos em recursos simbólicos para suas próprias vidas, através da subversão de seus textos. Isto posto, detectamos uma polissemia nas relações dos fãs para com a imagem da artista. Ora objeto de empoderamento, ora fonte de superação e/ou inspiração para inúmeras causas, de fato, esse símbolo da cultura popular exerce um impacto direto nas maneiras como seu público organiza e define seus ambientes socioculturais. Por exemplo, o fato da cantora ser uma artista mais reservada e distante do seu público faz com que eles imaginem razões plausíveis para isso. Para Gabriela Electra, a cantora “é muito na dela e não gosta muito de bagunça… Não é como uma Rihanna, que é porra louca!”. Para Jessica Lima, o fato dela ser afrodescendente traz uma alegria maior e a considera uma imagem de superação, além de fonte de inspiração para aprender inglês e prosseguir na faculdade. Para Bruno Brunet, o papel dela em sua vida foi fundamental, pois dublá-la e dançar suas músicas no quarto trancado (escondido dos pais) ajudaram-no a se autoaceitar e seguir em frente. Há, inclusive, um que beira o exagero – o fã Evandro foi responsável por vender um apartamento para acompanhar a artista em todos os shows da temporada no Brasil e na Europa. No filme, ele ainda não sabia o que iria fazer quando retornasse das viagens. Esse exemplo é incomum, mas expressa toda a força e o poder com que esses ícones populares podem impactar e transformar a vida cotidiana das pessoas. A paixão e o fascínio pela Beyoncé, sustentados por essa identificação em grupo, de fato, é o que injeta energia em seus corações e os fazem pegar condução por “até três horas” para chegarem ao acampamento e garantirem um lugar privilegiado, mas observamos que há inúmeras razões mais complexas e relevantes no âmbito social para a formação desse grupo.

Assim, observamos que é no e através do lazer que essas culturas juvenis ganham visibilidade e que o filme, longe de uma proposta de registro superficial, explora a profundidade de temas como o preconceito racial, a homofobia, o desencaixe social provocado pela falta de conhecimento e esclarecimento sobre esse assunto, etc. Assim, essa espera pelo show, o tédio e o “não fazer nada” durante os dias de acampamento configuram-se em ferramentas que os integrantes do grupo utilizam para reafirmarem suas identidades e ganharem confiança para serem o que desejam ser. Esse processo de comunicação leva-os a organizar o mundo à sua volta e, mais importante, ajuda-os a obter mais força para suas lutas coletivas e individuais perante à sociedade.

Por último, vimos que os fãs são capazes de se apropriar dos textos de seus ídolos e subvertê-los, transformando-os em recursos simbólicos para os mais variados motivos, como aprender inglês, prosseguir na faculdade ou até mesmo tomar decisões que deveriam ser extirpadas de toda a complexidade atual, como a de “se assumir gay”. A existência desse grupo, embora efêmero, gera enorme impacto na vida social desses fãs, desvelando as relações para com a imagem de seus ídolos, podendo elas serem vistas como objetos de empoderamento ou fontes de inspiração (entre tantos outros exemplos). Definitivamente, Beyoncé desempenha um papel significativo em suas vidas, que como vimos, vai além da simples paixão pelas suas músicas. Por isso, os estudos e as pesquisas acerca das culturas juvenis são primordiais para a compreensão das formas como a juventude se apropria dos signos culturais e das diversas maneiras com que participa socialmente, pois através deles conseguimos obter preciosos resultados e informações acerca dos diferentes modos como os jovens, hoje em dia, reafirmam e consolidam suas identidades, além de procurarem estabelecer seus lugares no mundo contemporâneo.

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