Certa Vez, No Velho Oeste…

Os moradores de Kingstown aproveitavam a tarde chuvosa para jogar pôquer e beber uísque no grande e empoeirado saloon da cidade. O pianista tocava uma música animada e era acompanhado por dois violinistas. As dançarinas coloriam o ambiente com seus trajes escarlates e violetas. No segundo andar, caubóis exaustos tomavam banho em largas tinas de ferro, desfazendo-se da sujeira de um árduo dia de trabalho. Outros, já limpos, procuravam se sujar novamente na companhia das donzelas disponíveis. Em meio à fumaça de charutos e cigarros e a comemoração de hábeis blefadores, o bartender limpava calmamente as taças de vidro e as guardava no armário de madeira atrás do balcão. Um viajante ou desconhecido que chegasse nesse exato momento teria a certeza de se tratar de uma cidade pacífica e feliz. E estaria enganado.

O clima agradável, na verdade, escondia o temor e a preocupação dos habitantes com a iminente visita de Ted The Mad. Os boatos eram pavorosos e falavam de um homem implacável, vingativo e cruel. Sem confiar em ninguém, assaltava sozinho, trens e bancos, eliminando quem se pusesse em seu caminho. Fora preso certa vez e escapou no dia seguinte ao estrangular e pegar as chaves do imprudente guarda que lhe dera um prato de comida. E em vez de ajudar a libertar os outros presos, como de praxe, pegou o revólver do chão e matou um a um, deixando vivo apenas um pobre mendigo, preso por vadiagem. Participara do assalto a banco que arruinou a vida e depôs o cargo de um marechal numa vila do sul e, talvez o seu maior feito tenha sido escapar com vida de uma caçada pelo deserto, sobrevivendo mais de dez dias em um ambiente inóspito. Boatos já colocaram-no até naquele famoso “tiroteio do curral”, embora ninguém consiga explicar o que ele estaria fazendo lá ou porque estaria na companhia daqueles homens.

No início da noite, ele chegou à cavalo. Tinha seguido por longos quilômetros pela linha de trem e estava exausto e encharcado. Antes de pensar em descansar e esticar as costas, dirigiu-se para o saloon. Dias de estrada secaram sua garganta de tal forma que sua voz estava rouca, meio cadavérica e a sede era tremenda. Ao parar na frente do estabelecimento, desceu do cavalo, passou a rédea em volta de um pequeno poste de madeira, ajeitou seu revólver preso à cintura e subiu lentamente os degraus. Os passos de sua bota imunda de lama não foram ouvidos enquanto ele avançava. Os sons da animada música e das conversas saíam pelas janelas até que ele passou pela portinhola e eles cessaram. O silêncio tornou-se sepulcral. Não havia vivalma a contemplá-lo sem o pavor característico das suas vítimas. Dirigiu-se para o balcão, caminhando suavemente, e sentou-se em um daqueles altos bancos de couro. Checou em volta e todos o fitavam, paralisados. Com a sua voz rouca, conferindo-lhe um ar ainda mais aterrador, fez seu pedido. “Por favor, um copo de bourbon”.

As pessoas no salão estavam imobilizadas. Essa, definitivamente, era a voz de um matador. Porém, o bartender levantou a sobrancelha, estranhando os seus modos. Ted repetiu seu pedido. “Por favor, estou com sede. Há dias viajo sozinho e preciso de uma dose para esquentar o corpo”. Amedrontado com a situação e com a frieza de suas palavras, o bartender abriu o armário e um copo limpo foi posto no balcão à sua frente, sendo imediatamente preenchido com o líquido âmbar. Ted sorveu com prazer a bebida e pediu mais uma dose. Com a garganta aliviada, virou-se para os músicos e perguntou, educadamente, o motivo de terem parado de tocar, afinal “música acalenta a alma”, como ressaltou. No mesmo instante, o ambiente encheu-se novamente de notas musicais alegres, disfarçando o clima nada agradável. Ele se levantou e foi em direção a uma mesa, onde cinco homens jogavam pôquer. Dois deles rapidamente se levantaram e abriram espaço para lhe ceder as cadeiras. “Não me lembro de tamanha hospitalidade por essas bandas, fico grato por me deixarem jogar”, declarou Ted. Os jogadores desconfiaram de suas palavras e enrijeceram as faces, mas assustados, decidiram reiniciar a partida. Após meia hora, Ted estava perdendo as suas moedas, quando lhe veio à mão a sua trinca preferida, de reis de copas. Apostou tudo o que sobrava à sua frente e desafiou os adversários. Aos poucos, os outros jogadores foram desistindo até que o último ainda no jogo olhou para a mão, conferiu o four de valetes fechado na última carta, mas desistiu da aposta. Mais valia perder uns dólares do que o pescoço. Ted recolheu o dinheiro contente, agradeceu a diversão e acenou para eles ao se levantar.

Com os bolsos cheios, rumou para o balcão para mais duas doses de bourbon e para alugar um quarto. Uma mulher atraente, tendo testemunhado a sua vitória, aproximou-se interessada em oferecer àquele perigoso homem um pouco de diversão. Educadamente, ele recusou a proposta. Ela insistiu, colocando as mãos em seu cinto de couro. Ted afastou-se dela e pediu calmamente que desistisse da ideia, pois estava exausto e só queria descansar. Seu tom de voz fez com que ela recolhesse os braços, apavorada com as intenções manifestadas por Ted. Ela, com certeza, diria depois às amigas o quão bruto era esse cruel pedaço de ser humano. Nesse instante, a porta do saloon abriu-se com força e três homens armados com revólveres e carabinas entraram. O líder se apresentou como Hernando El Toro, um bandido nascido na fronteira com o México, e rapidamente, aproximou-se de Ted. Outro silêncio funerário. Os passos da bota de couro contra o piso de madeira encardida soaram como um metrônomo ditando o ritmo da iminente sinfonia da morte. Pelos roubos, mortes de inocentes e violência contra as mulheres, Hernando era odiado em Kingstown. Mas se havia alguém capaz de expurgá-los da vilania de Ted, seria ele.

“Você vai morrer, Ted”, disse o bandido, furioso. As pessoas próximas se levantaram das cadeiras e procuraram um lugar mais distante para observar a cena. “Eu não fui o responsável, cheguei depois no local”, explicou Ted, calmamente. Ambos se entreolharam, estudando os movimentos um do outro. Hernando colocou a mão sobre o revólver no coldre e anunciou ameaçadoramente com a sua boca desdentada: “ele está morto e você irá pagar por isso”. Ted aproveitou para dar um gole do bourbon, franziu a testa e propôs que resolvessem o problema do lado de fora para não causar danos ao saloon ou machucar as pessoas. Hernando concordou, porém, quando Ted virou-se para seguir na direção da porta, El Toro apontou o revólver e deu dois tiros à queima-roupa, fulminando-o em segundos. O corpo emitiu um baque abafado ao se chocar contra o piso e foi alvejado mais uma vez, na nuca. Um tiro certeiro para não deixar dúvidas. Era uma morte mais condizente com a realidade da época, sem aqueles duelos dramaticamente inventados pelo cinema hollywoodiano. Hernando balançou a cabeça, como se esperasse uma reação do salão, pegou as moedas do bolso do morto, agarrou uma donzela à força e fugiu acompanhado de seus capangas.

O xerife chegou logo depois, enfurecido pelo infortunado atraso. Teria sido um momento épico em sua carreira capturar os dois fora da lei no mesmo lugar. Ao questionar as testemunhas e coletar as evidências, ficou sabendo pelo bartender que Ted era realmente um homem frio e calculista, capaz de se irritar se sua bebida não fosse servida imediatamente. A mulher sustentou a versão de ter se oferecido para ele, mas desistira quando percebeu se tratar de um homem egoísta e estúpido por ganhar dinheiro e não querer pagar uma bebida. Os jogadores de pôquer acrescentaram que Ted teria se intrometido no jogo sem pedir licença e quando ele estava prestes a perder tudo, ameaçou-os para garantir a vitória. Sobre Hernando, apesar de ser um homem repugnante e desalmado, as opiniões foram unânimes, ele prestara um serviço à comunidade. O xerife se aproximou do corpo de Ted e revistou os seus pertences. Num bolso, encontrou um documento assinado pelo Departamento de Justiça do Governo Federal para a sua vaga de xerife de Kingstown. Assim como ele no passado, Ted tivera os seus crimes perdoados e lhe fora concedida uma chance de recomeçar, sobretudo, por jamais ter matado alguém. Era bastante incomum esse perdão, mas o xerife entendeu a importância da decisão. Em uma terra selvagem, onde os homens cruzavam livremente as fronteiras da lei, era preciso ter como aliados aqueles que as compreendiam muito bem. Revoltado por saber que sua aposentadoria seria adiada mais uma vez, juntou os seus delegados e partiu para caçar Hernando El Toro pelas pradarias e colinas, jurando fazê-lo pagar pelos crimes cometidos.

(Texto escrito em meados de 2014)

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