Lembranças de Alguns Sorrisos

No longínquo ano de 2000, tive a oportunidade de morar nos Estados Unidos como aluno de intercâmbio. O avião pousou em Chicago numa quinta-feira bem cedo de manhã, dando-me a bela oportunidade de contemplar o aeroporto de O’Hare por cerca de quatro horas até que todos os estudantes tivessem chegado e a equipe de orientadores pudesse nos colocar em vans para partirmos rumo às orientações iniciais. Esfomeado, resolvi comprar o café da manhã no Mc Donald’s. Ao me aproximar do balcão, senti uma súbita vergonha de fazer o pedido em inglês. Não havia ninguém por perto. A atendente foi muito simpática e perguntou o que eu ia querer com um sorriso de quem não parecia ter acordado antes das quatro da manhã ou depois de enfrentar um longo turno da noite. Tomei coragem, fiz o pedido e paguei. Em pouco tempo, veio a comida errada. Óbvio, eles deviam estar todos exaustos. Decidi comer assim mesmo, afinal é Mc Donald’s. Enquanto saboreava o café e o sanduíche, olhei em volta e percebi que era real. A experiência estava acontecendo. Eu ficaria um ano longe de todo mundo que eu tinha conhecido na minha vida até então. Só desejei que não passasse tão depressa se ela fosse boa. Antes de me juntar aos outros estudantes, fitei a atendente de novo e ela dava outro sorriso bonito para um cliente. “Espero que acerte o pedido”, pensei.

No sábado, fui recebido pela família norte-americana. Era um casal jovem, sem filhos e pareciam ser simpáticos e amáveis. Assim que chegamos em casa, eles me pediram para deixar as malas, pois estávamos de saída para o zoológico, em Milwaukee (eles escolheram este passeio, provavelmente, por algo que eu dissera na ficha de inscrição). Eu amo zoológicos. Apesar das críticas que recebem, muitas pessoas não percebem o importante papel que eles cumprem ao receber animais machucados e que sofreram maus tratos, além de servir como centro de pesquisas para os cursos de veterinária e biologia das universidades. O que mais me chama a atenção é a organização do espaço em volta, a forma como constroem as ruas e designam os locais de interesse. Os visitantes acabam caminhando por várias horas sem sentir os esforços e contemplando paisagens incríveis. O dia foi maravilhoso e estão ainda gravados em minha memória os incontáveis sorrisos que demos ao observar os bichos e as lembranças de momentos engraçados naquele lindo dia de sol.

No domingo, portanto, no meu segundo dia com a família, eu fui visitado pelo técnico de futebol da escola. Não o futebol americano, o “brasileiro” mesmo. Imagino que quando o informaram sobre a vinda de um estudante brasileiro, ele tenha ficado eriçado e incapaz de se segurar até o início dos treinos para me conhecer. Ora, bem normal o comportamento. Seria o mesmo para um técnico de basquete se um americano do Bronx viesse às escolas brasileiras. Só imaginava que ele não deveria depositar demais as esperanças em mim. Escrevendo agora, percebo que lembro até hoje, de todos os detalhes da sua entrada na sala. O técnico estava com um sorriso de orelha a orelha, ávido em conhecer o novo reforço direto do Brasil, como se tivesse participando da transação da sua vida, a contratação que iria levá-lo à glória do campeonato local. Com o inglês ainda macarrônico, tentei avisá-lo que eu era um jogador abaixo da média, um digno nota quatro ou, na melhor das hipóteses, um cinco, cinco e meio, estourando a boca do balão (não lembro se disse “blowing the mouth of the balloon”, mas é possível), e que ele nem pensasse em gols, pois em campo oficial de onze contra onze, eu jogava de cabeça de área e mal passava do meio de campo. Nunca soube se ele entendeu o que eu falei porque ele acabou me colocando no ataque. Ele estava feliz naquele domingo e eu pude notar o sorriso sincero de um homem cuja personalidade era incrível, um coração bom e verdadeiro, um amigo e conselheiro. Era o presidente do clube dos intercambistas e sempre esteve ao meu lado nos momentos difíceis e alegres. Poucas vezes o vi durante o ano letivo sem estar sorrindo e sem ser atencioso com todo mundo. Jamais vou esquecer do seu rosto, ele era o típico “americanão”, desses que a gente olha a foto e ninguém erra a nacionalidade. Para imaginar como ele era, desde o primeiro dia, achei-o fisicamente idêntico a uma mistura entre Kevin Bacon e o Matt Damon mais velho. Não tem erro.

Na segunda-feira, compareci ao treino e, para a minha surpresa, estava entre os melhores jogadores do time. Eu não fazia nada de mais, só colocava em prática o que havia aprendido nas escolinhas, mas ao contrário daqui, misteriosamente, lá dava certo. É claro que tinha a ver com o fato de ser uma escola pequena, de poucos alunos, mas aqui nunca importou o tamanho da escola, eu sempre era um jogador medíocre. No primeiro coletivo, fui escalado como meia-atacante e fiz gols, isso mesmo, no plural. O treinador estava eufórico com a minha performance e eu não conseguia me conter de tanta felicidade, tudo estava incrivelmente perfeito. No terceiro dia de treino, fui visitado pelo jornalzinho local e fizeram uma matéria comigo, com direito a foto. Se havia ainda algum receio era o péssimo preparo físico, mas logo me avisaram que, pelas regras locais, os jogadores podiam ser substituídos indefinidamente e voltar a campo quantas vezes fossem necessárias. Fiquei mais aliviado. Contudo, tratou-se de um alívio passageiro. No quinto dia de treinos, numa sexta-feira, quebrei o tornozelo ao fazer um cruzamento para a área. Disseram-me, dias depois, que gerou um bonito gol de cabeça. No hospital, o choque de realidade me atingiu quando o médico aplicou o gesso e o treinador levou as mãos à cabeça, em sinal de desespero, desfazendo-se do seu marcante sorriso hollywoodiano. Pude jogar as duas últimas partidas da temporada, mesmo com o técnico me deixando em campo pouco tempo (para minha raiva, pois estava recuperado). No último, pelas oitavas de final, aos quarenta minutos do segundo tempo, tivemos um escanteio a favor, com a bola sendo defendida pelo goleiro e passando a poucos centímetros de mim. Sabe o pesadelo que grandes jogadores enfrentam quando perdem um gol em final? Essa era a minha copa do mundo, o meu momento de consagração final e de redenção pela temporada perdida. Infelizmente, levarei para sempre adiante a sensação de que poderia ter pulado para frente e empatado o jogo que nos eliminou.

Na primeira semana de aulas, ao sair do carro de muletas, parei por uns segundos à frente da porta do colégio. Pensei em desistir de tudo. Estava aterrorizado. Lembro de pensar que era fácil sumir. Bastava dar um telefonema e, no máximo em três dias, estaria de volta. Não precisaria enfrentar os monstros da minha mente projetados na realidade do cotidiano escolar de outro país. Decidi entrar e fui recebido quase instantaneamente por uma linda morena, cujo sorriso era do tipo daqueles que congelam nossa alma de tão bonito e perfeito. Ela fez um monte de perguntas, as quais metade não entendia, me ajudou a subir as escadas com as muletas e me levou ao meu armário que, por falta de sorte, ficava no penúltimo corredor. No final das aulas, ela me encontrou novamente na porta e retornou às perguntas sobre o Brasil, tirando dúvidas da cultura latino-americana e dos hábitos que nós temos, os quais, presumi, ela imaginava serem um pouco selvagens. Por um motivo que desconheço, nunca mais tivemos outra conversa, embora a visse de vez em quando nos corredores e no almoço. Ela parecia ter uma personalidade agradável, espontânea e divertida. Uma pena que não houve outra oportunidade de nos aproximarmos, sobretudo porque com o tempo e, tendo dominado melhor o idioma, poderia conversar muito melhor, além de neutralizar com mais eficiência o efeito devastador de seus dentes ultra brancos e os poderosos raios paralisantes que os acompanhava.

Ainda na manhã do primeiro dia, eu andava pelos corredores me sentindo dentro dos filmes que eu adorava. Garotos com camisa de futebol americano, garotas vestidas de cheerleaders, os nerds, as descoladas, o pessoal do teatro, a galera punk/hardcore, as góticas, os arrumadinhos, todos estavam amontoados, andando depressa de um lado a outro, buscando as salas de aula. Peguei o cronograma e olhei no mapa onde ficava a sala de matemática. Meu primeiro tempo era Álgebra. Entrei na sala e sentei numa cadeira disponível, atrás de uma garota morena, sophomore, que se virou e disse “Hi!”. Eu a cumprimentei de volta, afinal já estava afiado em cumprimentos de uma palavra só. Como a disciplina durava o ano letivo inteiro, acabamos ficando mais próximos. Eu adorava cutucá-la para pedir alguma coisa emprestado, geralmente, a calculadora. Quando ela indagava o porquê de eu não usar a minha, eu respondia que a dela jamais dava errado. Era incrível ver o seu sorriso mesmo depois de uma piada tão ridícula. E ela costumava passar os dedos por cima das orelhas para ajeitar o cabelo, um gesto tão bonitinho. Portanto, vocês podem imaginar a minha reação da mais pura perplexidade quando, após o término da experiência e dois meses depois de já ter retornado ao Brasil, recebi uma carta onde ela dizia que tinha um enorme crush em mim. Nesse momento, passou um filme na cabeça. Confesso que fui a vários treinos do time feminino de natação só porque ela fazia parte e decidi nadar pelo time masculino no semestre seguinte só porque ela era assistente da treinadora. Havia algo sim, lá no fundo, que eu nunca percebera, tanto do lado dela quanto do meu. Cheguei a dar entrada no processo de visto para retornar aos Estados Unidos seis meses depois do retorno, mas fui reprovado por não ter emprego e nem estar matriculado numa instituição de ensino. Mas não acho que o cônsul tenha me reprovado pela ausência de laços com o meu país. Embora eu, obviamente, não tenha dito nada, acredito que ele percebeu o brilho nos meus olhos e o fato de estar retornando para tirar essa história a limpo e, quem sabe, viver um novo sonho. Rememorando agora as situações, reparei que sempre sorria quando a via e finalmente entendi o motivo que me levava a pedir tantas coisas emprestadas. Teve um dia que cheguei a implorar ao seu irmão para emprestar o quintal da família para fazermos um vídeo de luta livre entre amigos. Era a única esperança de que ela participasse e a sua personagem entrasse abraçada comigo, o “campeão dos campeões” (no wrestling, ao menos, eu podia vencer). O problema é que, além de ela ser muito mais tímida que eu, minha alma tinha sido capturada por um ser de outro mundo. Eu ficara totalmente cego e insensível a quaisquer outros sinais de interesse.

Tendo decorrido, mais ou menos, umas três semanas de aulas, na hora do almoço, entrei na fila para pegar o meu prato. Subitamente, a garota mais linda de toda a escola se aproximou e disse algo que eu não entendi. As amigas começaram a me olhar e rir. Em meio às suas palavras, distingui somente “você” e “ali”. Como não demonstrei reação, ela me puxou pelo braço e me levou até a fila especial, na qual estavam presentes um garoto de cadeira de rodas e uma professora idosa. Agradeci o gesto, peguei a bandeja e sentei para comer, deixando as muletas encostadas ao meu lado. Enquanto comia na companhia do time de futebol, fiquei olhando para ela, de longe, sensibilizado pela sua atitude. É curioso poder espiar uma pessoa sem que ela se dê conta. Com isso, acabamos notando os mínimos detalhes nas expressões faciais. Ela aparentava ser meiga e gentil, falava com as amigas olhando nos olhos e mastigava de um jeito tão fofinho. Ao término do almoço, levantei-me para ir buscar os livros da próxima disciplina e eis que, para minha total surpresa, ela aparece junto ao meu lado. Isto porque o seu armário ficava a uns seis ou sete metros de distância do meu. Que coincidência! E para tornar a situação mais bizarra, no início daquela semana, eu havia pedido a transferência de armário, pois estava bastante difícil ir e voltar de muletas do penúltimo corredor a tempo para as aulas. Havia inúmeras possibilidades e lugares para ser reposicionado, mas o universo resolveu me conceder uma oportunidade. Dei uma rápida olhada disfarçada e percebi que ela também tinha reparado em mim e não conseguiu ocultar a sensação de surpresa. Dali em diante, tive mais um motivo para ir à escola!

Ao longo do ano, pude ver a dona do sorriso mais lindo de diversas formas, feliz, triste, animada, carente, solitária, sendo boba. Infelizmente, não tivemos nenhuma aula juntos, porém, era perfeito contemplá-la, mesmo por poucos segundos, quando chegava despenteada porque devia acordar em cima da hora; em alguns intervalos, às pressas para pegar os livros; na hora do almoço, falando com as amigas; e depois das aulas, quando ela ia para o treino de vôlei. Eu era um dos raros alunos que ficava para assistir aos treinos, de vez em quando, dividindo a arquibancada com um parente ou o namorado de alguma jogadora. Além da razão principal, eu adorava o esporte e estava há uns dois ou três anos jogando no Brasil antes de viajar. Enquanto estava de muletas, ofereci-me para ajudar e participar dos drills, mas a treinadora não achou uma boa ideia (francamente, acho que nem se eu estivesse com a perna em perfeito estado). No entanto, ela não podia me impedir de assistir e menos ainda de comparecer aos jogos em casa, nos quais fiz questão de torcer pela vitória e pela felicidade dela. Os momentos ruins eram quando o seu namorado, jogador de futebol americano, aparecia para atrapalhar a paisagem. Eu sou suspeito para afirmar, mas o sorriso do cara era bem esquisito, meio torto, sem graça, sarcástico demais. Eles não combinavam juntos e não sei o que ela vira nele (além do corpo atlético, lógico). No fundo, ele até parecia legal, os seus amigos o consideravam simpático e ele estava sempre rindo. Para falar sério, sei lá qual é a verdade, nunca parei para considerar o seu lado. Só sei que os melhores dias eram quando ele faltava ou quando ela olhava para mim, mesmo brevemente. Costumava me perguntar o que poderia acontecer se ela os dirigisse, sorriso e olhar, ao mesmo tempo, na minha direção. Poderia soar o alarme de tornado na cidade inteira (como aconteceu umas oito vezes ao longo da primavera) que não seria o suficiente para me acordar do feitiço lançado. Acreditem no que estou dizendo, pois ambos aconteceram numa das festas da escola, a Homecoming Dance, e nada foi capaz de despertar-me do transe.

A festa é considerada importante no calendário escolar e a arrumação do lugar estava impecável. Os alunos se divertiam e dançavam com a empolgante música do DJ. Para irmos direto ao assunto, lá para o meio da festa, eu estava sentado sozinho, um pouco afastado do pessoal, curtindo as músicas no meu canto. Neste momento, a minha desafortunada sorte, uma velha companheira de outros tempos, surgiu para apimentar a rotina deliciosamente monótona que vivenciava todos os dias. Desconheço se uma grande quantidade de pessoas passa por isso, mas a minha vida inteira tem sido, praticamente, uma batalha eterna contra as coincidências simbólicas. Seriam criações de uma mente ultra criativa? Situações reais deduzidas com base em provas evidentes e concretas? Interpretações sem nexo de informações advindas de observações enviesadas? Constatações perspicazes de um olhar atento e afiado? Nunca obtive resposta, pois o elemento primordial para se chegar à compreensão desses fenômenos é algo até bastante simples: a corajosa habilidade de arriscar. Sem ela, o que me resta são as conjecturas, a análise rasa dos eventos levando-se em conta apenas a memória e a busca pelo significado mais crível. Por isso, revelo a cena seguinte, o momento mais aterradoramente feliz e prazeroso daquele ano louco, sem devaneios, elucubrações ou interpretações, somente os fatos que me envolveram e me puseram bem próximo do sorriso mais lindo de toda a minha vida.

Como disse anteriormente, eu estava sentado, tomando um copo de ponche e curtindo as músicas, quando ela apareceu do nada e veio na minha direção. Paralisado e sem reação, eu a vi sentar-se na cadeira ao meu lado. Havia pelo menos mais umas cinco ou seis cadeiras e uns dois bancos duplos em volta, todos vazios, mas ela escolheu sentar-se ao meu lado. Nem optou pela clássica decisão de pular ao menos uma cadeira para um maior conforto. Não, ela sentou-se ao meu lado. Repito só para frisar o momento de pânico. Até senti a perna dela esbarrando na minha quando terminou de se aconchegar. Para piorar, ela havia terminado com o namorado há poucos dias (dias maravilhosos sem ele visitá-la no armário!). Prestes a implodir, tudo o que pude fazer foi olhar para ela, cumprimentar com a cabeça e continuar vislumbrando a pista de dança. Parecia um bom plano manter-se imóvel enquanto buscava compreender a situação. Assim, permaneci uma estátua humana fria e desesperada, aguardando uma ajuda divina. Se soubesse, rezaria para todas as religiões existentes. E até acho que uma divindade colaborou, se é que me é permitida uma intervenção interpretativa. O som diminuiu e o DJ teve a brilhante ideia de participar como coadjuvante dessa eterna recordação, colocando uma música lenta, daquelas impossíveis de se recusar um convite para dançar. As amigas vieram tirá-la de lá, mas ela recusou, gesticulando os braços como se não quisesse ir. Tentei tomar coragem, os pés tremiam, ensaiei umas palavras e quando estava prestes a convidá-la, olhei para o seu lindo rosto. O movimento da minha cabeça chamou a sua atenção, os seus olhos encontraram os meus e ela fitou-me por mais “mississipis” que a situação convencionalmente permitiria. Sem graça, ela mexeu os lábios e fabricou uma obra-prima. Era um sorriso suave, gentil, doce, mas meio aflito, como se esperasse uma reação. Foi o suficiente para me desmoronar. Se as amigas não estivessem ali, talvez eu tivesse expressado a minha vontade de convidá-la para dançar ou talvez esta é apenas uma das mil desculpas esdrúxulas que inventamos para nos proteger da aterrorizante sensação de que, às vezes, o universo nos cede um controle momentâneo. Pouco depois, mais amigas chegaram para buscá-la à força, dessa vez sendo bem-sucedidas. E eu me livrava do puro terror para adentrar o território da calma intranquila, reunindo os caquinhos de uma alma destroçada pela falta de ação. Três músicas e meia foi a duração total da cena angustiante, uma eternidade encerrada às pressas.

Nos dias seguintes, ela reatou a relação com o namorado e o cotidiano voltou ao normal. Em outras palavras, a segura e pacata apreciação silenciosa e distanciada. É óbvio que eu fazia outras coisas, ia às festas, me divertia, passeava, conhecia pessoas novas, ia aos shows, saía nos fins de semana, mas na escola, aproveitava cada segundo perto dela. Quase no fim do ano letivo, os alunos tiveram de preencher um questionário de aptidões profissionais a fim de descobrirem possíveis áreas de talento e interesse. Era uma atividade séria e voltada para o auxílio educacional, contudo, junto a ele, havia uma espécie de jogo em que você preenchia um longo formulário de umas sessenta perguntas sobre gostos pessoais, coisas preferidas e desejos amorosos e o computador imprimiria os resultados para verificar as dez pessoas no colégio que tinham as mesmas afinidades e possibilidades amorosas com cada um. Se existe mágica no mundo, eu gostaria de conhecer o feiticeiro responsável. Obviamente, o roteirista bêbado que controla a narrativa da minha vida (e seu encantador humor ácido), colocou-a na lista que recebi. Em segundo lugar. Isso mesmo. De pouco mais de duas centenas de alunas, o inesquecível nome dela estava impresso no meu segundo lugar. E o roteirista ainda caprichou no clímax, pois em questão de minutos, uma das amigas veio me revelar o poderoso efeito mágico: eu também estava na lista dela. De longe, vi que ela dava gargalhadas e parecia estar exultante com o resultado, ao contrário de outras pessoas que não viram graça nenhuma ou repudiaram o jogo (teve até briga de casal!). Não recordo a posição exata do meu nome, se em terceiro, quinto, sétimo ou décimo lugar. Pouco importa, ele estava presente numa folha de papel direcionada a ela e apenas a alguns centímetros das palavras True Love. Talvez o mais perto que já estive ou estarei algum dia deste sentimento.

Pela lei geral que rege a minha existência, se uma dada experiência está na reta final, pode apostar que haverão mais situações esdrúxulas e inusitadas pela frente. Na rua onde morei, tive uma vizinha linda e muito simpática que, durante o período de neve, foi quem me deu carona até o colégio e a gente conversava todo dia sobre diversos assuntos. Ela adorava passar batons de cores diferentes no caminho e sempre falava com empolgação dos seus objetivos de vida. O único dia que fui privado do seu lindo sorriso matinal colorido foi quando o carro rodopiou no gelo e quase desabamos colina abaixo. Ela ficou bastante abalada e levei uns dias para me recuperar do susto, mas logo retomei a divertida carona. Há tempestades de inverno que depositam tanta neve nas ruas que não há sal grosso que dê conta e naquele dia os carros da prefeitura não tinham jogado ainda a borracha moída para prevenir acidentes. Lembrarei com imenso carinho as curtas viagens de carro e dos papos incríveis. E foi fantástico saber que essa minha vizinha e o seu namorado foram coroados Rei e Rainha do Prom. Peguei umas semanas de carona com a Rainha da escola, muito chique!

A festa de formatura da escola norte-americana é chamada de Prom, uma abreviatura de Promenade, ou “passeio”. Às vésperas do Prom, eu não havia convidado nenhuma garota para ir comigo. Sentia-me um pouco meio para baixo, melancólico, ciente do fim deste sonho intercultural. Se eu fosse, decidi, iria sozinho, curtiria as músicas e aproveitaria do meu jeito, só que, em cima da hora, uma amiga me pediu para levar a sua irmã e eu não pude negar. Durante o baile, há uma tradição, um momento em que os casais desfilam no centro da quadra do ginásio enquanto as famílias comemoram das arquibancadas e dão berros de alegria, inclusive, com as suas metralhadoras fotográficas. Não é algo obrigatório, mas quase todo mundo participa. Sendo assim, a minha parceira me perguntou se eu gostaria de ir e eu respondi que se pudesse evitar, seria melhor. Sempre opto fugir dessas situações. Cerca de uma hora depois, conversando com o amigo ucraniano, outro estudante de intercâmbio, vi uma garota se aproximar, entristecida. Ela me contou que o seu desejo era tirar essa foto do desfile de casais e estava triste por não ter recebido nenhum convite e ter ido sozinha ao baile. Tentei me livrar, alegando que a minha parceira também queria e que decidimos não desfilar. Porém, a garota continuou insistindo, quase chorando e a fila começava a diminuir. A oportunidade dela seria encerrada em poucos minutos. Comovido, tomei uma decisão daquelas que a gente torce para esquecer pelo resto da vida. Entramos na fila e ficamos aguardando, ansiosamente. Quando ouvimos os nossos nomes serem anunciados, entramos no ginásio de mãos dadas ao retumbante som de aplausos. Eis que olho para a arquibancada e vejo a família da minha parceira em silêncio, incrédula, tentando entender a situação. Uma vergonha total. Flashes e mais flashes no meu rosto ajudaram-me a ofuscar o constrangimento de um homem cujo maior problema é o de não saber dizer não. No final, testemunhei a coroação da Rainha e do Rei e o sorriso honesto de uma linda garota simpática vendo o seu desejo ser atendido. Num canto, vi a estrela dessa história com as amigas e os respectivos namorados e tive uma ideia. Saquei a câmera do bolso e ensaiei umas palavras. Esse objetivo, pelo menos, seria mais fácil. Aproximei-me do grupo e anunciei que gostaria de fotos com todo mundo para recordar o momento. Eles sorriram e foram muito solícitos, mas a quantidade de poses no rolo fotográfico estava chegando ao fim. Então, se eu quisesse cumprir a missão, teria de economizar pedindo que ficassem todos espremidos e fingir alguns cliques, algo do qual não me orgulho. Até hoje não sei se dei muita bandeira quando, na vez dela, tiramos a foto sozinhos. Tomei coragem e tirei a foto mesmo. Não me importava, era a lembrança física do seu sorriso e valia a pena arriscar. No entanto, curiosamente, esta foi a única foto que saiu queimada. Na hora de ir, encontrei a minha amiga e a sua irmã e pedi desculpas. Até hoje sinto vergonha pelo que fiz, mesmo que elas tenham me perdoado e dito que não se importavam tanto assim. Para suavizar as memórias, gosto de imaginar que aquela garota conseguiu realizar o desejo de ter uma foto do desfile e eu de ter participado na transformação de um rosto triste num agradável sorriso. E isso é uma recompensa de valor inestimável.

No fim do último dia de aula, ao retirar os livros do armário, vi a dona do sorriso mais lindo surgir com bastante pressa. Estava suada por conta da chegada do verão e, provavelmente, iria correr ou malhar nas proximidades da escola. Apesar disso, teve tempo de olhar para mim (estávamos a sós no corredor) e me cumprimentar com a cabeça, abrindo mais uma perfeita beldade labial. O último de todos, o derradeiro sorriso que me acompanharia pelos anos à frente. Em seguida, ela trancou o armário, virou-se para partir e jamais a vi novamente. Pela cultura norte-americana, geralmente as mulheres adotam o sobrenome dos maridos, o que inviabiliza quaisquer possibilidades de busca na internet, dada a falta de informações (não foi por falta de tentativas). Entretanto, prefiro assim, permanecendo um mistério. É embarcando nessas lembranças alegres, como balões impulsionados pelo ar quente do júbilo de se ter vivido a experiência, que posso me teletransportar para diversos momentos da viagem e revivenciá-los quantas vezes desejar. Sempre me indaguei sobre a potência daquele sorriso em me tornar mais feliz e colorir meus dias, se durante a festa eu poderia ter alterado o curso do universo e, sobretudo, se havia um nome para o que sentia ao olhar para ela. Só descobri há poucos anos, quando assisti a um famoso filme de comédia romântica. Inspirado pelo que os personagens deduzem na trama, a ficha caiu e recordei-me de que ela possuía vários tipos de sorrisos. E para terminar, não posso me esquecer do qual julgo ser o mais importante – o que me faz sentir mais realizado – o meu sorriso ao lembrar dos seus sorrisos.

(Texto escrito em meados de 2006)

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