
O seriado Carcereiros foi ao ar pela Rede Globo de 26 de abril de 2018 a 22 de janeiro de 2021, em três temporadas. Inspirada na obra homônima de Drauzio Varella, sua primeira temporada tem 15 episódios, escritos por Marçal Aquino, Fernando Bonassi e Dennison Ramalho. A direção é de José Eduardo Belmonte e a do documentário dos ex-carcereiros é de Pedro Bial. A trama é sobre Adriano (Rodrigo Lombardi), um historiador formado que é agente penitenciário para seguir os passos do pai, Tibério (Othon Bastos). Ele vive com a sua esposa, Janaína (Mariana Nunes) e a sua filha, Lívia (Giovanna Rispoli). Na penitenciária, Adriano é ajudado pelos colegas, Valdir (Tony Tornado), Vinícius (Jean Amorim) e Isaías (Lourinelson Vladimir) para enfrentar os desafios cotidianos da profissão, convivendo junto à violência e insegurança[1].
Quanto aos aspectos técnicos, o visual do seriado é o seu grande chamariz. Dotado de um naturalismo e realismo viscerais, a fotografia realiza um trabalho excelente ao colocar os telespectadores como supostos presidiários, encarcerados pelos planos apertados e sufocantes, dignos da realidade enfrentada pelos presos. A iluminação se aproxima do cinema e seus fortes contrastes entre luz e sombra, criando a atmosfera pesada, desprovida de paz e tranquilidade, existente nas mais de mil e trezentas unidades prisionais do país. Os tons escuros e soturnos, criados pelo departamento de arte, completam a pintura tenebrosa do desprazer e a tristeza reinantes num ambiente desprovido de liberdades e sob as constantes ameaças de tortura e morte. Quase não há momentos de alegria, pois mesmo quando Adriano está distante do trabalho e próximo de sua família, ele parece carregar o fardo de uma profissão custosa para o psicológico humano. Para aqueles que se submetem a essa carreira, na qual permanecem constantemente em contato com a violência, a morte, a perda e a dor, mesmo o aconchego do lar se torna estranho e incômodo.
A temática apetece o imaginário sociocultural brasileiro, expondo as suas ínsitas paixões pela violência exacerbada e pelo seu senso de justiça calcado no doce sofrimento dos culpados. Lançada um ano antes, na plataforma Globoplay, isto pode ter contribuído para uma recepção bastante positiva por parte do público na estreia[2], mantendo-se sem grandes variações. Muitos elementos participam desse enorme apelo e expurgação pela violência, como a rotina de trabalho dos agentes carcerários; as relações entre os prisioneiros; a estrutura hierarquizante e assustadora das falanges e grupos inimigos; as leis e condutas morais próprias do espaço; a corrupção endêmica do sistema e suas consequências organizacionais na gestão do presídio; e os subterfúgios que os presos encontram para requisitar e/ou favorecer uns aos outros em prol de melhorias nas condições de encarceramento, são alguns dos elementos poderosamente atrativos e até estranhamente sedutores. Afinal de contas, uma parte tão constitutiva da vida contemporânea em sociedade, como a instituição penitenciária, gera grande curiosidade para os telespectadores.
Em relação à sua estrutura dramática, o seriado repousa sobre o tema das séries de violência em presídios, em especial, Carandiru, Outras Histórias (2005) que, inclusive, compartilha profissionais da equipe de roteiristas. Os palcos das estórias são as três penitenciárias: a Vila Rosário, Lavapés e Filinto Prates. Essa opção dos criadores pode ter sido resultado do plano de se cobrir as vidas de muitos personagens presentes na obra de Drauzio Varella. Afinal, são diretores de presídio, chefes de segurança, carcereiros e outros funcionários com aspectos tão díspares entre si que seria problemático juntá-los em apenas um núcleo principal. Baseado nisso, o seriado pode ter tentado também cobrir um grande número de estórias para demonstrar que cada um dos presos tem seu próprio passado. Porém, essa multiplicidade de elementos espremidos fez com que Adriano personificasse as ações, comportamentos e características de muitos carcereiros, o que tornou as suas atitudes controversas e impertinentes[3]. Ademais, é interessante notar que o antagonista não são os presos e, tampouco a penitenciária, mas as consequências dos atos de Adriano. O clima de incerteza e insegurança que domina a sua mente faz com que o protagonista tenha de racionalizar praticamente todas as decisões no trabalho e os efeitos de uma escolha errada ou impensada são bastante nocivos à sua saúde mental. Por fim, pela sua proposta de apresentar uma minitrama com começo e fim em cada episódio, o desfecho da temporada fica em aberto, com um final difícil para o protagonista ao ver a sua namorada sendo levada pela polícia, provavelmente, para outra penitenciária.
Na visão geral, o seriado busca acompanhar a árdua profissão de Adriano e os confrontos incessantes com os indivíduos que foram desprovidos da liberdade. A rotina da penitenciária é o gatilho que impulsiona as adversidades, explorando os casos que envolvem as estórias de alguns presos. O jogo capitalista não adentra os altos muros de suas instalações, permanecendo no âmbito externo, assim como muitos dos elementos que envolvem as extremas desigualdades e os motivos que engendram parte dos elevados números da criminalidade. Por isso, não há críticas em nível sistêmico, apenas regras que sustentam essa política criminal ou buscam melhores condições de encarceramento, além das jogadas que apontam para o comportamento dos presos como algo inerente ao status de detento, encerrando justificativas para as torturas físicas e mentais que recebem. Isto posto, apesar dos diferentes tipos penais[4], eles são estigmatizados e retratados como indivíduos que perderam sua humanidade, “presos incuráveis” e que não devem ser libertados para retornarem à vida em sociedade. Além disso, não houve representações que tenham feito reluzir concretamente quaisquer mecanismos de sujeição, salvo pelo medo, sustentando as imagens de um sistema incapaz de conter a violência.
Para iniciar a análise, as penitenciárias do seriado não apresentam quase nada de fora do imaginário pré-concebido acerca da vida no cárcere brasileiro. Em nível organizacional, são explícitas as críticas quanto a falta de verbas, a carência de funcionários, a falta de regulamentação e vigilância nas atividades dos presos, a superlotação das celas, a corrupção atingindo também os agentes carcerários[5], etc. As rebeliões são constantes, presos morrem sem que nada seja feito e quase sempre o confronto com criminosos superiores ou os chefes das falanges resultam diretamente em retaliações externas ao ambiente prisional, indicando a extensão do mundo do crime e a liberdade com que os detentos continuam agindo mesmo atrás de pesados portões de ferro. Em um episódio, um dos carcereiros depoentes chega a dizer que alguns presos têm mais mordomia do que ele em sua residência. Além disso, as relações dos presos com os agentes e entre si possuem as mesmas peculiaridades, regras e consequências, mas é justamente esse o caminho que o seriado encontra força para ser diferente e fazer deslizar as suas violentas estórias.
Nesse sentido, há um diferencial de enorme impacto e ele se dá pela figura do protagonista. Adriano, construído para ser um homem médio, um funcionário dedicado e honesto, como outros, que conduz o seu trabalho da melhor forma que consegue, adquire ímpetos simbólicos e torna-se a materialização da crença na Justiça, no Direito Penal e na Instituição Penitenciária. Pelas suas ações, é nítido que ele se pauta com base nos valores e nos Direitos Humanos, respeitando todos os presos e tratando-os como iguais. Logo, frente às condições precárias exibidas, é como se ele agisse para tentar equilibrar o entrechoque de duas forças: o caos na representação da unidade prisional e da criminalidade com a sua convicção de que com um trabalho escrupuloso e correto é possível estimular resultados positivos. Por este ângulo, Adriano é um ícone das regras promovidas por grupos sociais em prol de melhores condições nos presídios, na esperança de humanizar a instituição e atuar na redução dos índices criminais. Frequentemente, ele atravessa os limites de suas funções para consertar algo que julga estar errado, apaziguar os conflitos ou, simplesmente, ajudar o próximo. Entre os exemplos, há o de quando ele corre risco de vida para salvar o filho do chefe de uma facção, detido em outra ala; a ajuda ao Baiano, um preso boxeador que teve o pedido de competir negado pelo juiz (e reclama da falta de políticas de reabilitação e ressocialização de detentos); ao procurar uma maneira de livrar uma cela de um espírito atormentado e aliviar a superlotação; e quando protege um assassino de crianças de ser morto, etc.
Este simbolismo sofre um giro quando Adriano vai cobrir as férias de um agente e ele acaba perdendo a cabeça. A insegurança é um sentimento constante na vida desses agentes e ela se torna, na prática, uma ferramenta de trabalho com a qual se deve rapidamente aprender a operar, seja para não causar mais problemas ou mesmo manter-se vivo, como vários episódios enfatizam. Na sua penitenciária, ele sempre toma as rédeas para resolver os conflitos e contratempos que surgem pelo caminho, e não iria ser diferente na Lavapés. Porém, ele não contava que as normas mudam de lugar para lugar e, neste novo local, a pressão da rotina iria se mostrar tão desregulada que os picos de tensão gerariam descargas psicológicas nocivas nos agentes, afetando suas consciências. Com isso, as noções de Adriano acerca da sua realidade e o que julga ser correto para um melhor funcionamento da unidade prisional são transformadas no momento em que ocorre a ruptura com o que ele aquiescia ser possível de ser feito. Quando a filha do diretor do presídio é sequestrada, eles acreditam ter sido obra do Kadafi, um homem com fama de ser um abjeto sequestrador. Na cena, Adriano assiste à tortura causada pelo carcereiro Jasão[6], na qual o preso leva fortes pancadas com uma barra de ferro, o que o deixa prostrado no chão. Mais tarde, enervado pelas ameaças dos sequestradores, ele o leva para a sala, a fim de descobrir o paradeiro da menina. A tensão começa a escalar porque Kadafi continua jurando que é inocente, até que Adriano perde o controle e ameaça arrancar-lhe a orelha, quando Jasão o interrompe, anunciando que acharam o cativeiro e Kadafi estava dizendo a verdade.
Apesar do seriado ter sido cuidadoso ao colocar como alvo dessa explosão repentina um sequestrador perigoso para a sociedade, não deixa de ser visível que no âmago de seu simbolismo, Adriano passa a carregar o mais puro furor do senso comum, como uma força que o puxa para baixo e distante de sua imagem anterior. Nesse entrechoque de ideias, o terrível engano cometido se sustenta pela visão de um homem com defeitos, passível de perder o controle e que errara no impulso, mas tentando “acertar”. O sistema prisional é tido como falho, mas a condução desses métodos mais brutos e desumanos torna-se impreterível para se manter a paz, sobretudo, quando se lida com seres “desprovidos de humanidade” (e cujos aspectos responsáveis por arrancá-la são solenemente descartados). Assim, esvai-se o fato de que, para demonstrar seu método alternativo sem uso da “violência”, ao tentar obter informações de um detento acerca do paradeiro de um alambique ilegal, ele tenha ameaçado um preso de colocá-lo na solitária com um estuprador, vestindo apenas uma calcinha. Claramente, para Adriano, tortura é apenas física, jamais psicológica[7]. E o contraste fica expresso quando, um pouco mais adiante, ele retorna à racionalidade e entende que passara dos limites. O diretor lhe entrega uma barra de ferro para que ele pudesse “fazer as honras” e violentar o verdadeiro culpado pelo sequestro, mas ele recusa, apesar de que a sua consciência estava modificada, talvez irreparavelmente.
Os depoimentos do documentário paralelo à ficção levantam consideráveis exemplos das regras e jogadas que permeiam a narrativa. Primeiramente, chega a ser estranho que alguns personagens deem declarações, pois acaba obscurecendo as intenções da proposta, retirando o seu caráter de um documentário baseado nas experiências reais de homens que foram agentes penitenciários. Outro ponto é o de que não há comentários de ex-detentos (suas vozes não importam?). Sobre isso, mesmo que o título indique a perspectiva unilateral dos agentes, todavia, sustento que neste universo prisional, a participação daqueles que estiveram algum dia do outro lado das grades e sofreram na pele os corolários desse sistema decadente, definitivamente, traria mais substância para as discussões, agindo como poderoso catalisador para desmistificar muitas visões estreitas. Disto resulta que a maioria dos assuntos abordados resumem-se ao mal que os presos cometem e às punições a que eles são submetidos dentro da prisão, excluindo-se as relações externas, cujas razões e fatores carregam enorme peso na definição dos seus destinos.
Neste panorama, por um lado, os depoimentos expõem a vulnerabilidade do cargo de agente penitenciário e os muitos desafios que eles têm de enfrentar para cumprirem suas tarefas ou burlar certas regras em prol da paz e segurança de todos no presídio (alguns ex-agentes comentam o trabalho que é feito para tentar regenerá-los para a vida social exterior); por outro lado, eles apresentam os traços de uma visão de mundo enviesada (também pelas suas experiências) que olha para a situação da criminalidade como uma escolha racional dos criminosos: em dado momento, um entrevistado declara que não consegue entender como o ser humano consegue fazer tanta crueldade. Em seguida, a câmera mostra um monte de presos assassinados pelo pátio, após uma rebelião. Este ponto contribui para ilustrar o estigma de presidiário no Brasil, algo que permeia todos os episódios. Os presos são “unificados” em torno de representações que os interligam por uma identidade coletiva, apesar dos diferentes tipos penais que estejam cumprindo (e além de uma série de outras possíveis razões para a formação do caráter). Em outras palavras, eles são agrupados em torno de um ideal que os vislumbra como animais, pessoas que perderam sua humanidade e não há outro lugar na sociedade para habitarem.
Diante deste quadro, a discussão retorna à questão da violência subjetiva e objetiva. Um seriado que proponha como cenário principal um presídio (e neste caso, foram três), por óbvio que suas tramas e cenas seriam recheadas da violência visível e que mexe com os brios dos telespectadores, levantando-os da cadeira em toda as cenas que Adriano é espancado e corre sérios riscos de vida ou um “preso safado” encontra seu destino final. Em contrapartida, a violência objetiva, apesar de manifesta explicitamente pela situação dos presídios e isso impulsione jogadas que possam permitir alterações de regras, não é problematizada do ponto de vista das causas de sua existência. Pelo contrário, como a análise buscou demonstrar, as representações sugerem um grupo de indivíduos que optou por arcar com essas consequências, ignorando os parâmetros originadores da gama de opções de vida para os mais pobres, deformando suas percepções sobre o que existe e suas noções acerca do que é possível em se tratando destas consequências. Portanto, enquanto a violência subjetiva transmite a atmosfera desse realismo visceral da sociedade, a objetiva continua descartada no patamar de “invisível”, mantendo escondidas as vísceras abertas da realidade concreta.
Para concluir, o seriado apresenta um visual sedutor e uma proposta que põe os telespectadores em contato direto com as relações existentes no presídio, transformando-os em supostos hóspedes desse clima macabro, cujos momentos de agonia e dor são mais frequentes do que as batidas policiais para revista das celas. Quanto às suas representações, o seriado realiza críticas gerais sobre as condições precárias estruturais, administrativas e burocráticas dos presídios e o protagonista reveste-se de uma aura que se agarra aos ideais dos Direitos Humanos na tentativa de promover um equilíbrio e trazer algumas perspectivas menos desumanas para o debate público do encarceramento. No entanto, quase como uma regra global de seu universo diegético, os presos adquirem uma imagem negativa, de “presos incuráveis” e indivíduos bestiais e desalmados, como se a sua condição de detento justificasse um único caminho biográfico. Há presos violentos e que, de fato, não podem conviver em sociedade, mas como procurei explanar, sua unificação em torno deste ideal, longe de promover esclarecimentos acerca da criminalidade e/ou a compreensão dos diferentes tipos penais, a imagem que ressoa para além de suas muralhas é a de que são todos animais selvagens em potencial, mesmo em uma penitenciária com quase dois mil detentos e que, pelas estatísticas, os presos por crimes hediondos e contra a vida ou a dignidade sexual sejam a minoria.
[1] A trama e as curiosidades estão no Gshow, disponível em: http://glo.bo/3Cso08y.
[2] O seriado registrou 25,7 pontos de média e 40,8% de participação, sendo a melhor faixa entre as séries nos últimos anos. Segundo o UOL. Disponível em: https://bit.ly/3e48Rkk.
[3] Além disso, a quantidade de atrocidades que ocorre ao protagonista (incluindo o sequestro de sua filha), se ocorresse na mesma velocidade na vida real, a profissão seria uma insanidade.
[4] No ciclo de jan-jun de 2021, havia pouco mais de 820 mil presos no país. O número de presos por crimes contra a pessoa (homicídio e violência doméstica) era de 74 mil, cerca de 9%; e de 34 mil para crimes contra a dignidade sexual, cerca de 4%. Em contrapartida, mais de 200 mil presos por porte de droga, seja tráfico ou associação para o tráfico, cerca de 24%. Segundo o INFOPEN. Disponível em: https://bit.ly/3SCpVNp.
[5] No nono episódio, após desconfiar da lista de mulheres que estavam visitando um preso, Adriano investiga e descobre que o chefe da segurança, Juscelino, era sócio em um negócio de prostituição que aliciava mulheres para os presos que podiam pagar. Ele foi imediatamente preso. Ademais, um agente novo era irmão de um preso e estava facilitando a entrada de drogas. Também houve depoimentos afirmando que muitos agentes acabam sucumbindo e “trocam de calça”.
[6] Em uma cena anterior, ele já havia testemunhado outra tortura, na qual Jasão lhe apresentou um revólver apreendido como justificativa para a utilização de seu método.
[7] Aliás, o fato de ele torturar psicologicamente os presos e ainda se gabar disso não parece ser condizente com a sua construção épica, além de ir contra às formas de consciência instauradas.