
Em 1828, o Sr. Thomas Peel se preparava para partir da Inglaterra para o Rio Swan, na Austrália[1]. Impulsionado pelos incentivos da colonização britânica e os investimentos e promessas de riqueza, ele recebera da coroa os direitos sobre determinadas terras com a missão de fundar uma comunidade com a qual a capital Londres pudesse estabelecer um comércio lucrativo. Em suas naus, lembrou de colocar tudo o que fosse necessário para o seu empreendimento: as máquinas de produção industrial, as ferramentas de trabalho, os meios de subsistência e três mil operários (homens, mulheres e crianças), todos qualificados e treinados para os cargos a serem ocupados na distante colônia.
Eis que, ao desembarcar, seus operários imediatamente abandonaram a sua causa, tomando para si as terras da região. Eles iniciaram uma plantação por conta própria, levantaram suas moradias, “passaram a caçar de manhã e pescar à tarde”, comemoraram as colheitas e puderam se reproduzir e garantir a sobrevivência de suas proles. O Sr. Peel, logo no primeiro dia, viu-se desprovido de seus criados e trabalhadores, ficando sem ninguém até para lhe trazer água do rio. Sozinho, procurou por respostas: o que havia acontecido? Ele planejara os detalhes com tanto cuidado, por que dera errado? Ora, para compreender o que se passou com o Sr. Peel[2], a exposição de um breve contexto histórico da época se faz necessária.
Na Grã-Bretanha do século XIX, lordes de riqueza inestimável e influentes parlamentares formavam a alta cúpula aristocrática que determinava as questões políticas da Europa e, consequentemente, de uma imensa extensão de terras por todo o planeta. O Império Britânico, principalmente após as vitórias nas batalhas napoleônicas e com a grande expansão econômica pós-revolução capitalista, havia conseguido abrir os caminhos para navegar em águas profundas e distantes sem concorrência, tornando-se o maior império em toda a história da humanidade. Nessa época, Londres era a capital financeira e industrial do mundo, de onde os bancos e investidores privados apostavam largamente na vida além-mar.
Durante esse período, um homem destacou-se como uma figura-chave nas novas colônias e no estabelecimento da coroa inglesa na Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Seu nome era Edward Gibbon Wakefield[3] e ficou bastante conhecido pelo seu conjunto de ideias, práticas e planos que visavam transformar os modos de colonização efetuados pelos ingleses. Tudo começou com sua carta A Letter From Sidney, de 1829, publicada enquanto cumpria pena, onde ele declarou que a falta de uma força de trabalho adequada era o motivo da miséria nas colônias. Para superar essas deficiências, engajou-se na produção teórica que nomeou de “colonização sistemática”, uma série de propostas para a coroa inglesa quanto à aquisição de terras, de trabalho qualificado e investimento de capital no exterior. Esse programa foi tão bem-sucedido que obteve adesão até de pessoas bastante influentes, como Jeremy Bentham e James Mill (ambos amigos de seu pai e fortes influências na sua infância). Mais tarde, no livro England and America (1833), ele revisa sua teoria e supostamente teria detectado o precioso segredo da colonização e das relações de produção capitalistas.
Retomando a história, viu-se que o Sr. Peel era bem precavido e levou para a colônia tudo que lhe era necessário, conforme sua experiência: força de trabalho qualificada, equipamentos e ferramentas. Em seu país, bastava um homem de negócios promover um investimento que imediatamente surgia uma multidão de desempregados, ávidos por uma oportunidade de trabalho. Então, o que será que ele havia deixado de fora das naus quando partira em viagem? Apesar de no mundo atual a resposta parecer óbvia, ela não era para os intelectuais da época:
Por que esse fracasso com todos os elementos de sucesso, um clima agradável, muita terra boa, capital e trabalhadores suficientes? A explicação é fácil. Nesta colônia, nunca houve uma classe de trabalhadores. Aqueles que saíram como trabalhadores logo que chegaram à colônia foram tentados pela superabundância de boas terras a se tornarem proprietários de terras (Wakefield, 1833, p.33).
Nesse sentido, descobrir o que o Sr. Peel havia negligenciado e esquecido significava ir de encontro ao pensamento tradicional dos economistas, para quem as relações sociais do modo de produção capitalista tinham raízes em leis naturais e que, portanto, naturalmente, elas teriam de surgir também nas colônias. Como não aconteceu dessa forma, foi possível perceber um dos elementos fundamentais na sua constituição, o que permite, ao mesmo tempo, a sua gênese e a sustentação do capital nas sociedades industriais – as relações de produção:
O grande mérito de E. G. Wakefield não é o de ter descoberto algo novo sobre as colônias, mas o de ter descoberto, nas colônias, a verdade sobre as relações capitalistas da metrópole. […] Inicialmente, Wakefield descobriu nas colônias que a propriedade de dinheiro, meios de subsistência, máquinas e outros meios de produção não confere a ninguém a condição de capitalista se lhe falta o complemento: o trabalhador assalariado, o outro homem, forçado a vender a si mesmo voluntariamente. Ele descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, intermediada por coisas (Marx, 2013, p.1016-1017).
O Sr. Peel, por conseguinte, teria “falhado” em perceber que os meios de produção e de subsistência não são, em si, capital[4]. Eles se tornam capital “em condições sob as quais servem simultaneamente como meios de exploração e de dominação do trabalhador” (Marx, 2013, p.1017). Uma vez livres, os homens não precisavam mais se submeter à dominação da metrópole e abandonaram-no para buscar a sua própria subsistência e a auto-realização como seres humanos. As leis britânicas, seguidas à risca em seus territórios, eram pulverizadas nas colônias, pois não bastava oferecer boas oportunidades de emprego; quem iria se dispor a vender a sua força de trabalho com tantas terras, alimentos e matérias-primas em abundância? A coroa inglesa se viu, então, diante do processo de exportar as suas relações de produção. E com isso, ela deu início a um processo devastador: as fazendas foram queimadas, o gado foi aniquilado, as árvores foram derrubadas e as terras tiveram de ser cercadas e vendidas a preços exorbitantes e fora do acesso popular. Para certificar de que tudo ocorreria conforme o planejado, a presença da força policial nas colônias foi essencial, pois poderia haver um grupo de homens insatisfeitos com o progresso a ser implementado. Eis que os trabalhadores, enfim desprovidos do sustento e incapazes de garantir a sobrevivência de suas famílias, estavam prontos para se curvar diante das demandas do generoso e corajoso Sr. Peel[5]. Para encerrar, observa-se que o modo capitalista de produção e acumulação exige o aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriação do trabalhador (Marx, 2013).
[1] É importante frisar que algumas informações extras foram adicionadas à história. Entretanto, defendo que esses conteúdos se tratam de uma alusão à expansão capitalista e não deturpam ou descaracterizam seus elementos principais.
[2] Thomas Peel foi primo de segundo grau de Robert Peel, duas vezes Primeiro Ministro do Reino Unido (1834-35 e 1841-46) e um dos fundadores do Partido Conservador, além de ser patrono da moderna polícia inglesa e ter fundado o Serviço de Polícia Metropolitano, a Scotland Yard, em Londres, em 1829 (Hasluck, 1967).
[3] A tese que descreve a biografia e a rigorosa produção teórica de Edward G. Wakefield e serviu de base para a introdução é a de Robert Schultz (1965).
[4] Cito agora a passagem que forneceu a inspiração para essa introdução: “O Sr. Peel, lastima ele, levou consigo, da Inglaterra para o rio Swan, na Nova Holanda, meios de subsistência e de produção num total de £50 mil. Ele foi tão cauteloso que também levou consigo 3 mil pessoas da classe trabalhadora: homens, mulheres e crianças. Quando chegaram ao lugar de destino, ‘o Sr. Peel ficou sem nenhum criado para fazer sua cama ou buscar-lhe água do rio’. Desditoso Sr. Peel, que previu tudo, menos a exportação das relações inglesas de produção para o rio Swan!” (Marx, 2013, p.1017).
[5] Na lápide de Thomas Peel, pode-se ler: “Thomas Peel, […] o primeiro colono corajoso, que suportou com muita fortitude as dificuldades e decepções sofridas pelos primeiros colonos”. Foto anônima. Disponível em: https://bit.ly/33y586z.
HASLUCK, Alexandra. Thomas Peel of Swan River. New York: Oxford University Press, 1965.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
SCHULTZ, Robert. Edward Gibbon Wakefield and the development of his theory of “systematic colonization”. Dissertation (Master’s in History). USA: College of Graduate Studies, University of Omaha, 1965.
WAKEFIELD, Edward. England and America: a comparison of the social and political state of both nations. London, 1833.