
O seriado Segunda Chamada foi exibido pela Rede Globo a partir de 8 de outubro de 2019. A sua primeira temporada foi baseada na peça teatral Conselho de Classe, de Jô Bilac, e conta com onze episódios escritos por Carla Faour e Julia Spadaccini e a colaboração de Giovana Moraes, Jô Bilac, Jô Abdu, Maíra Motta e Victor Atherino. A direção-geral e artística é de Joana Jabace. As gravações ocorreram na antiga Escola do Jockey Club de São Paulo e foi dirigido por Breno Moreira, João Gomez e Ricardo Spencer. O nome da escola fictícia é um tributo a uma das mais importantes escritoras negras do país: Escola Estadual Carolina Maria de Jesus. Quanto à trama, ela se desenvolve a partir do núcleo principal de personagens, formado por Lúcia (Débora Bloch), professora de língua portuguesa, que retornou recentemente às salas de aula após ser afastada por conta da morte traumática de seu filho, Marcelo (Artur Volpi), atropelado em frente à escola. Ela mora com o seu marido, o Dr. Alberto (Marcos Winter), que sofreu uma apoplexia (derrame cerebral) e precisa de intensos cuidados médicos. Lúcia tem uma relação amorosa com o professor e diretor, Jaci (Paulo Gorgulho) e os dois contam com os talentos em sala de aula (e fora também) da professora de Matemática, Eliete (Thalita Carauta), uma mulher independente, decidida e forte; a professora de História, Sônia (Hermila Guedes), uma mulher esgotada e que sofre agressões físicas do marido, Carlos (Otávio Muller); e o novo professor de Teatro, Marco André (Silvio Guindane), recém chegado à escola. Em seus onze episódios, além dos problemas do sistema educacional, alunos e professores enfrentam as difíceis situações do cotidiano, responsáveis por gerar estórias comoventes[1].
Como um produto valioso e um registro necessário[2] em meio ao cenário político conturbado no país, a temática do ensino da EJA (Educação de Jovens e Adultos) aborda os problemas vivenciados pelos indivíduos dos setores mais pobres da sociedade. Por se tratar de uma modalidade de ensino noturno, quase todas as cenas são, obviamente, noturnas, mas apesar do clima sombrio dos dramas vividos pelos personagens, não há uma sensação de afastamento e tristeza. Pelo contrário, as estórias são apresentadas de forma habilidosa e emocionante. Em termos técnicos, os departamentos de fotografia e arte retratam uma estética interessante, desvelando o sublime e a poesia em meio às agruras da pobreza e das evidentes desigualdades, mas o ponto primordial da obra é a direção impecável de Joana Jabace, em seu primeiro trabalho na emissora, aliada a um elenco talentoso, cujas atuações de Débora Bloch e Hermila Guedes merecem destaque especial.
Sua estrutura dramática apresenta o núcleo principal dos professores, cujas estórias privadas entrelaçam-se com às dos alunos para formarem os alicerces das subtramas ocorridas a cada episódio, com o arco dramático revelando a evolução das interrelações do corpo docente e, especialmente, de Lúcia e a morte do filho. A escola desponta como o palco de alegrias e desilusões, de batalhas para se obter educação em meio às guerras diárias pela sobrevivência. Sendo assim, muito mais do que ensinar as suas disciplinas, os professores vão além das funções escolares e tornam-se psicólogos e conselheiros na ajuda aos alunos com os problemas, além de providenciarem doses extras de força e coragem para que consigam o diploma. As relações de antagonismo se dão de duas maneiras: a pobreza e as dificuldades para driblar as adversidades sociais. A primeira reflete as barreiras que os alunos têm de enfrentar para continuar estudando; e a segunda, pelas investidas contra os preconceitos entranhados na sociedade sob suas variadas aparências. Sobre isso, é interessante notar que, num episódio, um personagem pode assumir uma posição preconceituosa e, em outro, ele passe a ser alvo dos ataques, experimentando as agruras de enfrentá-lo na pele, a fim de aprender importantes lições.
Quanto às questões secundárias, há um fator um tanto intrigante na trama. Nenhuma relação heterossexual em toda a temporada apresenta-se como saudável ou mesmo ordinária, salvo a relação construída entre Sônia e Marco André e da qual obtém-se pouca informação. Após décadas de um pensamento conservador da emissora, talvez as autoras tenham aproveitado o momento (e a liberdade) para injetar altíssimas doses de resistência social, principalmente, graças às aberturas proporcionadas por inquietantes e ativos movimentos sociais. Além disso, essa suspensão das relações heterossexuais saudáveis possui a importante tarefa de iluminar os componentes defeituosos e deploráveis da sociedade brasileira, como a homofobia, o abuso e a violência física e psicológica cometidos pelos homens às mulheres. Logo, não há espaço para mulheres fracas. Sônia é a que mais reluta em corrigir seu problema e denunciar o marido agressor, mas seu comportamento tem uma função evidente, criar uma espécie de modelo, de exemplo a ser seguido, pois um número elevado de mulheres se encontra na mesma situação. É por isso que, no final, ela supera seus medos e aflições e consegue sair de casa. Aliás, todas as personagens saem fortalecidas das suas construções arquetípicas, com conquistas positivas e visíveis, decorrentes de suas mútuas ajudas. O modo como as autoras abordaram o tema, inserindo nos diálogos as opiniões e discursos antagônicos no horizonte do senso comum, foi uma estratégia fecunda para a ilustração do quadro social de preconceito, onde venceram os argumentos que elas intencionam ensinar – o de que as mulheres não têm de ter vergonha da sua condição e devem ir à luta, a situação pode mudar. Não obstante, as questões de gênero envolvem pautas mais profundas, a de que gestos e atitudes de enfrentamento podem ajudar a combater a opressão à mulher, sobretudo, ao cumprir com o seu papel de aula, iluminando o caminho das telespectadoras na busca de seus direitos.
Quanto à visão geral, pelo título, sabe-se que segunda chamada é quando se falta a uma prova ou teste e a instituição de ensino permite que o aluno tenha outra oportunidade. Diante disso, os personagens são alunos que teriam “falhado” em estudar quando eram crianças e agora têm uma segunda chance para buscarem conhecimento e melhorias para suas vidas. E como se esses elementos ainda não fossem suficientemente interessantes para a proposta, o seriado ainda transforma os telespectadores em alunos, matriculando-os automaticamente em seu curso de “Realidade Social e Respeito ao Próximo”, onde a cada episódio, ou melhor, aula, exibe-se um preconceito ou manifestação de ódio contra um indivíduo ou grupo social minoritário, ensinando o que já se esperava ser óbvio no senso comum – a tolerância e o respeito ao próximo. Isto posto, não há críticas em nível sistêmico; as suas representações vislumbram e sustentam um jogo capitalista, cujas jogadas e regras contra o preconceito[3] permitiriam uma vida social menos indigna e penosa (embora não menos competitiva). Portanto, são essas pautas, em nível situacional, e o entrechoque das ideias com as regras conservadoras e reacionárias subjacentes na sociedade que completam os pontos principais de crítica, além de uma pálida inclinação meritocrática que oculta as razões do fracasso do aluno. No final, a maioria dos personagens consegue o diploma; porém, restaria saber se os telespectadores, para quem talvez também fora direcionado o título, passaram pelo teste, saindo dessa experiência com a aprovação e uma compreensão das noções de esfera pública e privada[4] para uma coexistência social mais pacífica.
Inicialmente, a análise detectou que nenhum dos personagens demonstra possuir sequer uma fração do que poderia ser entendido como a realização plena dos seus funcionamentos como ser humano. Em outras palavras, as suas vidas são apresentadas como sendo as únicas possíveis de serem vividas, são vidas opacas, sem sentido, desprovidas da satisfação de vontades e prazeres concretos, vidas de sonhos impossíveis, de raras alegrias, vidas construídas, enlatadas e produzidas para ocuparem posições técnicas ou subdesenvolvidas. A ausência de personagens ricos ou de condições financeiras asseguradas desvela uma paisagem sombria de crítica social e que procura demonstrar a realidade das classes menos favorecidas, cujos indivíduos não são donos de si mesmos e enfrentam uma luta diária pela sobrevivência. Quem está desempregado sofre e se desespera por não conseguir um emprego; aqueles que o têm, fazem malabarismos para assegurá-lo, e também não se sentem plenamente realizados. Marco André, o professor de teatro e filho adotado de uma médica, é talvez a única exceção, sendo o personagem de maior poder aquisitivo. Ele apresenta um comportamento tranquilo e despreocupado até quando recupera o seu carro roubado e constata que levaram tudo, inclusive as poltronas. Simbolicamente, a sua participação representa o fato de que mesmo em meio à pobreza e às desigualdades, a arte não se deixa ser entrelaçada por esses problemas mundanos e resiste à sua maneira. Através de sua ajuda, a arte serve de anteparo aos alunos e professores, proporcionando um consolo, elevando a alma e contribuindo com sua dose de libertação e crença para uma vida melhor. A prova disso é que suas aulas de teatro auxiliaram os alunos a se expressar e entender um pouco melhor o lugar de cada um deles, além de providenciar as forças para seguir enfrentando a violência das suas condições de vida.
A propósito, longe de querer mensurar ou comparar o quanto a violência subjetiva causa danos pessoais irreparáveis, é imprescindível ressaltar o horror e a monstruosidade de se verificar a violência objetiva como a verdadeira antagonista. Em seus episódios, atesta-se sem dificuldade um posicionamento crítico contra as estruturas de poder, porém, as regras introjetadas em sua narrativa apontam para pessoas que, embora tenham vidas difíceis, estão tentando encontrar o seu espaço em um mundo capaz de comportá-las, contanto que mantenham-se moralmente firmes e cumpram as suas responsabilidades básicas. Diante disso, percebe-se uma visão de mundo, um traço do substrato ideológico presente na emissora, no qual os esforços individuais adquirem proeminência e surgem como jogadas decisivas e auto-suficientes para driblar as desigualdades e para uma mudança estrutural em suas vidas. Ora, não há nada de errado em se empenhar para obter maiores ganhos e vencer a extrema pobreza, mas quando suas cenas agrupam a ideia de que basta o esforço individual para vencer, isto é, sem se considerar os fatores relativos aos talentos, habilidades, conhecimentos ou a pura sorte (ou pior, mostrando aqueles que “falham” como se não tivessem se esforçado o suficiente), o seriado contribui para engessar o mito da ascensão social, obliterando, ao mesmo tempo, dois traços inerentes ao capitalismo: o fato de que a distribuição desigual dos atributos pelas unidades da sociedade tampouco tem a ver com a falta de esforços e o de que não há condições viáveis para todos ultrapassarem as barreiras de classe. Em outras palavras, por um lado, as suas representações desvelam a macabra face de um modelo decadente e hostil, no qual a competição gera inúmeras dificuldades para o lado mais enfraquecido; por outro, oculta os aspectos de um sistema que só pode continuar a existir se as suas relações de produção permanecerem as mesmas (no sentido de reproduzir essas condições materiais dos menos privilegiados).
Neste momento, pode-se recolher os fragmentos representados a fim de se obter uma percepção geral de suas inter-relações e como elas implicam na questão ideológica. No sexto episódio, duas estórias se entrecruzam poderosamente para reforçar essa atmosfera dos esforços individuais. Maicon Douglas é um motoboy desempregado que se desespera com a falta de recursos para sustentar sua esposa e filho pequeno. Por conta disso, ele resolve assaltar a escola onde estuda. À noite, ele esconde o rosto no banheiro com uma máscara e invade a turma de Lúcia com uma pistola, mas durante o assalto é desarmado por Cleiton e tem a sua identidade revelada. Os alunos se revoltam e tentam linchá-lo enquanto outros correm para chamar o diretor Jaci. A professora consegue acalmar os ânimos e tirar todos os alunos da sala de aula, porém, Maicon consegue fugir pela janela. Na porta da escola, ele é morto a tiros para o horror de Lúcia, que se sente culpada. Nesse ínterim, ocorrem os eventos em torno de Silvio, um morador de rua tranquilo, que sonha completar a educação básica para arrumar um emprego e uma vida melhor. Depois de uma aluna reclamar de seu mau cheiro, a professora Eliete pede que ele se lave na torneira da escola e, mais tarde, anuncia que conseguira um quarto bagunçado para ele passar as noites. Silvio agradece, mas por não poder trazer o seu cão, ele desiste e volta para as ruas. No final, ele “tranquiliza” Eliete, pois acredita que a água do chafariz terá retornado e poderá se lavar antes da aula.
Nessa direção, todas as estórias são atemporais na trama e poderiam ser inseridas a qualquer momento sem danos à sua estrutura dramática. Então, por que elas surgem juntas? Afora o insano ato de um colega assaltar a própria turma e a professora que tanto respeita, ao ilustrar o assalto simultaneamente com a situação do mendigo, a cena adquire conotações especiais. Afinal, se Silvio, que é calmo e não tem um teto para dormir, consegue desistir de morar num quarto improvisado por conta do amor ao cão e agarra-se firmemente ao sonho de arrumar emprego e se estabilizar, a decisão de Maicon converte-se em um potente simbolismo de viés duplo: frente ao seu condenável ato de violência, instantaneamente, pulveriza-se a condição de morador de rua como uma alternativa abominável e inaceitável para torná-la algo viável, um ideal minimamente honesto e de dignidade. Logo, a vida de sub-proletário reveste-se de uma decisão moral a ser validada socialmente, pois mesmo nesta situação decadente (inclusive, na qual, poder-se-ia esperar um ato de desespero), ele mantém sua lucidez, esperança e valores aceitáveis pela sociedade.
Esta é a força que ambas as mensagens promovem em conjunto: o assalto desastrado de Maicon tem suas causas reais removidas do ato e a ele são somados ingredientes que demonstram o crime como uma escolha pessoal, tomada devido à sua “incompetência” de se integrar ao sistema, embora o impulso tenha sido a sua incapacidade de funcionar plenamente como ser humano. Diante disso, recai sobre o personagem o julgamento de que poderia tê-lo evitado, obscurecendo o fato de que a alternativa é “igualmente” inviável e inaceitável. Essas imagens ganham um reforço ideológico quando a professora Eliete, curiosamente, a mesma que tentara ajudar Silvio, reprova a sua atitude criminosa, mencionando que conseguira criar a filha sozinha, que “nem nos piores momentos (ela) pensou em fazer uma coisa dessas” e que “todo mundo pode fazer uma escolha também[5]“.
O homicídio de Maicon serve de conexão e elucida mais elementos. Ao longo dos primeiros episódios, os telespectadores são apresentados aos problemas estruturais da escola, tais como o curto-circuito, o ventilador queimado e as goteiras nas salas de aula, entre outros. A princípio, eles surgem como elementos épicos de um reflexo da realidade vista nas escolas públicas brasileiras; contudo, quando se tornam um bloqueio real para a realização das ações dos personagens, eles passam a adquirir portentes traços dramáticos[6], impulsionando a crítica em relação à falta de verbas para a educação. Todavia, no sétimo episódio, quando Lúcia chega para lecionar na noite seguinte ao crime, ela vê a poça de sangue de Maicon intacta e um homem soldando a grade de proteção em cima do muro. Nesta lógica, de onde surgira a verba para colocar grades de um dia para o outro? A escola tem recursos, mas eles não são utilizados para melhorar as condições de ensino? O sangue do rapaz ainda nem havia secado e o trabalho já estava quase completo. Pela construção épica de Jaci e as situações que permitem inferir sobre a sua consciência, ele não é um diretor negligente ou desonesto. Por conseguinte, a mensagem é simples e direta: há críticas sobre as regras que engendram a falta de recursos provenientes da gestão pública; porém, pode-se obtê-los rapidamente se o substrato ideológico surge para reforçar que a prioridade “não é a educação”, mas nos proteger dos que não aceitam tornar-se insubmissos moradores de rua.
Como último aspecto da análise, a potência criativa das autoras deu asas a inúmeras estórias comoventes, cujas complexidades englobam as desigualdades, a pobreza e os preconceitos, gerando reflexões críticas e debates cruciais para os avanços sociais, como o caso da Solange, que abandona o seu bebê na escola por não ter como cuidar ou com quem deixar; a transfobia sofrida pela Natasha; a tentativa de estupro de Reginaldo após dar uma pulseira para Sônia e ela negar o presente; a bolsa de estudos que Gislaine quase perdeu num concurso de redação por ser garota de programa; o óbito de Rita depois de ter tomado um abortivo, ao descobrir que estava grávida da quarta criança; a violência sofrida por Aline, que surge na aula com o olho roxo e as amigas aconselham a denunciar o namorado; a situação de Jurema, forçada pelo marido a abandonar a escola, pois não queria que ela fosse mais educada do que ele; a acusação de roubo à Valquíria, por ela ser ex-presidiária; a expulsão de Marcelo depois do pai descobrir que ele é homossexual, entre outras. Essas estórias apresentaram muitos assuntos profundos e dinâmicas que produziram um relevante número de jogadas alinhadas, em graus variados, à proposta do seriado. Portanto, discorrer sobre todas elas, inundaria as páginas da análise com descrições de atitutes positivas e necessárias para as lutas sociais.
Nesse sentido, selecionei a estória de Wallace, a fim de expandir a questão dos esforços individuais como um processo que oculta os privilégios de classe ao retirar as causas das desigualdades de seu locus real, para inseri-las nos indivíduos e nas suas ações. Com uma participação discreta na trama, pouco se fica sabendo de Wallace ao longo da temporada, apenas que trabalha duro como pedreiro e dá o seu máximo para ajudar a mãe e a irmã. Todavia, a sua participação ganha enorme destaque, sobretudo, por ter sido o único aluno a não receber o diploma. Por conta desse trabalho pesado (e das horas extras que o patrão o forçou a cumprir), ele não fora capaz de estudar o suficiente para apreender toda a matéria. Em virtude disso, tentou colar na prova final, mas foi pego pelo diretor Jaci, sendo imediatamente reprovado. Desesperado, subiu no telhado da escola e quase pulou para o suicídio, só não o fez por conta da ajuda e carinho da professora Lúcia.
Em um diálogo entre os dois, ela lhe diz que todos os alunos vivem vidas difíceis e que, se ele estudar e se empenhar mais, poderá dar uma vida melhor para a mãe dele e a irmã; assim, a superação é retratada como algo que tem que vir de dentro, com cada um tendo de ser responsável para encontrar a sua própria força para superar as dificuldades. Chega a ser curioso que ela reconheça que a vida é dura com os alunos e que o seriado tenha mostrado um patrão hostil com Wallace, mas proponha uma ideia que o responsabiliza por algo fora de seu controle. O que se deve constatar é que há uma sociedade cujas contingências histórico-sociais arrancaram de Wallace as condições para uma vida digna e, não satisfeita, ainda erige inúmeras barreiras para obstruir o seu caminho, impedindo-o de seguir seus sonhos. Logo, não são os “Wallaces” que têm de mudar ou “se esforçar mais” para serem aprovados, mas que sejam reconhecidas as falhas sistêmicas e combatidas as ideias que insistem em culpabilizar os indivíduos por não conseguirem realizar plenos funcionamentos como seres humanos. No final, seus colegas recebem os diplomas e, na sua última conversa com a professora, ele aquiesce a própria falta de esforço e promete se matricular de novo para o ano seguinte[7].
Para concluir, o seriado compromete-se com uma importante reflexão dos preconceitos existentes na sociedade. No campo das lutas contra a opressão de gênero e raça, ele se posiciona firmemente, iluminando diversas jogadas em prol dos avanços sociais, cujas ideias precisam ser urgentemente sustentadas. As regras enfatizaram, mais nitidamente, os problemas concernentes à falta de recursos por parte do Estado. Sob o eixo dos privilégios e uma leve alusão à meritocracia, ele apresentou uma pintura mais complexa, de traços finos e textura pálida, na qual os elementos representados possuem a força de omitir as causas das desigualdades sociais. A análise percebeu que, mesmo contendo críticas sociais consistentes, o substrato ideológico da emissora ainda permeia seus episódios, desvelando uma visão de classe cujos interesses não se importam que Wallace, Maicon, Silvio e os outros jamais tenham tido suas necessidades básicas atendidas; deles é esperado que sejam empenhados, que se reinventem, que driblem as dificuldades da vida, que saibam utilizar os seus talentos e habilidades, que consigam tomar as decisões corretas e que tenham, acima de tudo, paciência – e isso, sem escorregarem para o mundo do crime, acatando a condiçao de moradores de rua com suas esperanças.
[1] A trama e as curiosidades estão no Gshow, disponível em: http://glo.bo/3C3SI6A.
[2] Talvez, não acidentalmente, o seriado tenha adquirido força para ser produzido e exibido, justamente no primeiro ano do mandato de um governo federal cujas ideias e pautas apresentam a mais profunda falência moral e cognitiva, inseridas num dos enquadramentos sociopolíticos mais atrasados, danosos e repulsivos na história do país.
[3] Quanto aos problemas abordados, nota-se que após resolvido algum conflito, nos episódios seguintes, os personagens, muitas vezes, agem como se não tivesse havido nenhum preconceito, não há resquícios dos conflitos. A velocidade com que eles aprendem e consertam os seus erros é irreal, mas talvez por conta de um apelo “desesperado” das autoras, esta é a velocidade com a qual os telespectadores precisam se identificar.
[4] O seriado pode ser inteiramente analisado por esse outro escopo teórico, abordando os problemas da sociedade brasileira em compreender efetivamente o que significam as esferas do público e privado, tão bem trabalhadas nos episódios. Além disso, outros temas sociais, como a homofobia e a transfobia, infelizmente, não foram aprofundados aqui por falta de espaço.
[5] Quanto a isso, resta saber se essas escolhas da população poderão contar com boas doses de sorte no futuro: “mais pobre levaria 9 gerações para atingir renda média do país”. Segundo o UOL. Disponível em: https://bit.ly/2GNjyaj. “Brasil é o segundo pior em mobilidade social em ranking de 30 países”. Segundo a BBC. Disponível em: https://bbc.in/2H0WQeo. E também, “Brasil é um dos países com menor mobilidade social em ranking global”. Segundo a Exame. Disponível em: https://bit.ly/30UvHRN.
[6] Um exemplo é a cena em que os alunos realizam suas provas embaixo de dezenas de goteiras e o alagamento da sala faz com que Sônia tenha de mover a sua turma para outra sala.
[7] Ironicamente, nma matéria do Gshow, essa ideia também é reproduzida: “quem não se dedicou tanto assim, pode acabar reprovando”. Disponível em: https://glo.bo/3iTeJsS.