Suburbia (2012): A Força do Milagre Divino na Ascensão Social

A série Suburbia foi exibida na Rede Globo entre 1º de novembro e 20 de dezembro de 2012. Sua única temporada conta com oito episódios escritos por Luiz Fernando Carvalho, que assina a direção-geral, e Paulo Lins. O quadrinista Pedro Franz adaptou a série para o formato de história em quadrinhos, publicada pela LFC Produções, Globo Marcas e o estúdio Retina 78[1]. A trama acompanha a vida de Conceição (Érika Januza), depois que ela deixa sua cidade no interior de Minas Gerais para viajar ao Rio de Janeiro ainda menina. Depois de um acidente no trânsito, ela é salva por uma mulher que a leva para a sua casa e cuida dela em troca de favores domésticos. Anos depois, já adulta, ela sofre uma tentativa de estupro do noivo da patroa e vai morar com a sua amiga Vera (Dani Ornellas) em Madureira. Neste bairro, ela conhece o jovem rapaz Cleiton (Fabrício Boliveira), por quem se apaixona, mas terá profundas decepções e sofrimentos. No final, eles conseguem resolver os problemas, ficar juntos e se casar[2].

A série faz uso da estética realista, buscando planos inusitados e um tom estilístico autoral para retratar o bairro de Madureira e o Rio de Janeiro sob lentes diferenciadas. A fotografia se impõe e coloca os telespectadores em meio às duas faces da mesma pobreza, explorando os contrastes dos dois núcleos principais. O elenco principal foi formado por não-atores, entre eles, artistas do Afroreggae e do Nós do Morro. As performances são dignas de nota positiva, principalmente, as atuações de Fabrício Boliveira e da ex-gari, Ana Pérola. A trilha sonora atua como a força que embala o cotidiano dos personagens, desvelando os seus traços de personalidade e suas construções identitárias. Composta por clássicos do funk, do charme, do samba, da MPB, cada etapa possui sua música para preencher a tela e completar com harmonia e pujança a paisagem audiovisual da série. As canções de Conceição são suaves e delicadas; as do seu Aloysio remetem a um tempo mais antigo, do rádio; as de Cleiton ajudam a desvelar uma personalidade conturbada e de traços contraditórios e a de Jéssica é a batida característica dos tempos de baile funk dos anos 90[3]. Em ocasiões específicas, a trilha sonora realiza dissonâncias líricas, como a música de Roberto Carlos no decorrer de uma tentativa de estupro e, depois, quando Conceição chega em casa após ter sido praticamente estuprada por Cleiton no motel. A música é o elemento mais forte da série e serve como os traços de expressão artística que move o universo diegético e funciona como fator de escapismo e prazer, de impulsos carnais ou a energia capaz de unir as pessoas.

A estrutura dramática da série repousa primariamente sobre os múltiplos e repetidos sofrimentos que ocorrem à protagonista, cujo nome lhe fora dado em homenagem à Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Acima do propósito de se contar uma história desencadeada por eventos de conflito direto, os momentos de dor que revestem a protagonista é que costuram a narrativa e criam uma colcha de retalhos épicos para apresentar sua vida. O antagonismo é estabelecido pela alusão à Virgem Maria, como se a protagonista descesse dos Céus, agraciada pela força divina e imunizada contra os pecados para absorver o sofrimento humano e ajudá-los a expiar suas aflições e angústias. É por isso que a personagem mantém uma pureza desconectada da sociedade, toca o coração das pessoas que atravessam o seu caminho e passa por situações que simbolizam a agonia sofrida por uma alma totalmente desprovida de malícia. Ao fim de sua trajetória, ela se torna quase uma santa, operando o milagre de salvar o amado da morte e fazê-lo nascer novamente pela dádiva do matrimônio.

A representação feminina é composta de um arranjo sistemático de certos arquétipos que criam uma conjunção interessante acerca do comportamento e das diferentes atribuições do papel social da mulher. Sem adentrar uma especificação, observa-se a presença deles em construções como a da mãe e protetora dos filhos; da irmã evangélica, digna, batalhadora e equilibrada; a casta sensual, ingênua e delicada; a caçadora lasciva, hedonista e de espírito livre, entre outras. Quanto a isto, cumpre ressaltar que Jéssica e Conceição geram um poderoso contraste, onde uma surge como o exato oposto da outra, duas faces que juntas se negam, sem se anular: a primeira se realiza na condição de objeto sexual, impondo-se como uma mulher determinada; a segunda é pura, recatada, tímida e confia nos outros para que eles a conduzam pelos caminhos corretos. Em virtude disso, as cenas em que ambas disputam a atenção de Cleiton simbolizam a dualidade do prazer carnal e do imediatismo terreno frente à moralidade religiosa e a preservação do espírito que todo mundo tem de enfrentar ao longo da vida.

Entre as questões secundárias, pode-se incluir uma crítica à tentativa de estupro de Cleiton[4], um descuido narrativo condenável e negligente que desvelou uma faceta tenebrosa de sua narrativa. Primeiramente, não obtemos conhecimento de uma parte relevante da infância e adolescência de Conceição, somente quando ela se torna adulta e passa a trabalhar como empregada doméstica. Pela maneira como a personagem foi construída, é notório que ela não tenha enfrentado muitas situações de aprendizado e experiências, permanecendo como uma pessoa simples e ingênua, se não até infantil. Logo, suas definições acerca do que é bom e mau na vida humana perpassam uma pureza e uma simplicidade ao nível de uma santa, como supõe-se ter sido proposital pelos roteiristas, embora ela esteja envelopada por uma sexualidade pouco condizente com a sua personalidade. Por ser atraente, Conceição chama a atenção por onde passa e a série explora bem os incômodos e as situações de desrespeito e assédio vividos pelas mulheres em suas rotinas. No espaço de poucos dias, ela sofreu duas tentativas de estupro e foi raptada pelo juiz em sua motocicleta. Contudo, o que poderia ser uma forte crítica social, amparada por uma enxurrada de situações traumáticas na intenção de chocar o público com as jogadas necessárias para mudanças urgentes nas regras, revestiu-se de uma aura mórbida e contraproducente: a pessoa a quem ela havia confiado a sua vida e trocava carinhos tornou-se responsável pela experiência mais constrangedora e traumática de sua vida e tudo de forma dramaticamente gratuita.

É senso comum o fato de que a realidade social é formada por um universo de possibilidades e há uma infinitude de razões para se explicar e/ou justificar as ações humanas. Acerca deste caso, incontáveis mulheres sofrem violências diárias e ficam acuadas de denunciar seus agressores e acabam aceitando as agressões por não terem condições de fugir ou encerrá-las. Cada uma dessas mulheres toma suas atitudes com base no que elas julgam possível e certo dentro de um leque viável de opções (dentro de suas condições materiais de existência): algumas de casam com esses homens enquanto outras conseguem escapar e reconstruir as suas vidas. Isto posto, quando a série expõe um ato de violência dessa natureza, em especial, no arco dramático envolvendo os protagonistas, sem qualquer justificativa ou ação passível de resolução dramática e depois encerra a estória com um belo casamento sob juras de amor eterno, o que está buscando concretizar? Um estupro seria um erro banal que pode ser consertado por um mero arrependimento vazio? Ou seria mero “descompasso” no caráter de Cleiton durante um momento de embriaguez? Pela conjunção dramática de toda a temporada, percebe-se que ela não trouxe uma crítica à violência doméstica, nem um alerta às telespectadoras, tampouco tratou-se de um exame consciente e racional sobre a misoginia. Apresentar uma relação amorosa entre duas pessoas e incluir uma tentativa real de estupro sem uma base justificativa e, paralelamente, desenvolver o ato de sua redenção sob a desculpa de Cleiton ter cometido um descuido por “excesso de amor”, é simplesmente gratuito e lamentável que seja aprovada para ir ao ar na televisão brasileira.

Tecidas essas considerações, a série retrata uma família pobre e simples do bairro de Madureira, cuja educação aponta para uma moral baseada em valores religiosos. O ambiente familiar é agradável, eles se ajudam, têm carinho uns pelos outros e respeito mútuo. Não houve críticas em nível sistêmico e as desigualdades não foram representadas sob um viés crítico do jogo capitalista, embora seja mais do que evidente que a família e os amigos passam por dificuldades e problemas financeiros. Quando estão presentes de modo indireto, elas surgem como facetas e resquícios pálidos de uma realidade naturalizada e cuja “salvação” se dá por uma forte crença no Divino. Inclusive, a série chega a pontuar o fato de serem pobres por conta de uma possível escolha do Altíssimo para que eles fossem “testados” a viver dignamente. Por causa disso, a fé e as expressões artísticas são os elementos que alimentam as suas almas e geram sentido para as suas existências. Há também uma proveitosa disposição de tolerância religiosa, cujas jogadas criam mensagens positivas sobre a relação amistosa entre uma filha evangélica e uma mãe devota de uma religião de matriz africana. Quase não houve relações concretas para iluminar os traços organizacionais, portanto, é em nível situacional, mais especificamente, nas ações individuais de Conceição e de Cleiton e os bandidos que desvelam-se as mais relevantes reproduções da série. Pela proposta narrativa, não houve também a presença concreta e sugestiva de mecanismos de sujeição e obediência.

No momento em que decide abandonar a sua residência e se mudar para a casa da sua amiga em Madureira, Conceição atravessa a fronteira da condição de uma subproletária para a de uma mulher pobre, desprovida de praticamente todos os bens materiais. Este é o ponto de ruptura na sua trajetória narrativa, marcando uma mudança na sua percepção sobre estilos de vida, valores e comportamentos completamente inéditos. Este sentimento de união proporcionado pelos moradores da casa e de sua amiga Vera serve de contrapeso para os vários problemas que ela enfrenta, porém também desvelam inverdade sobre sua condição social. Ela chega somente com a roupa do corpo, não sabe ler/escrever, sofre para arranjar emprego, mas age constantemente como se a falta de dinheiro fosse um mero detalhe. Aliás, quando o assunto é a Conceição, a família inteira parece esquecer seus problemas característicos das classes mais baixas. Como dito anteriormente, talvez a intenção fosse pontuar apenas o prazer e a felicidade que pode ser encontrada em quaisquer lares com amor e ternura e nada impede que um grupo de indivíduos “adote” uma pessoa e a traga para seu lar sem requisitar nada em troca. Todavia, ao aprofundar o nível de análise, nota-se uma conjuntura que distorce as relações de dominação e promove os privilégios de classe ao ocultar o eventual papel da sorte na loteria da vida humana.

A questão gira justamente em torno da enigmática “sorte” que acompanha Conceição. Sem considerar a sucessão de sofrimentos que ela enfrenta, os quais afastariam quaisquer argumentos de considerá-la afortunada, o pontapé inicial de sua sorte se dá quando uma menina sai sozinha do interior de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, em cima de um trem de carvão e, ao fugir do “centro de correção juvenil”, sofre um acidente que lhe garante uma moradia minimamente decente[5]. Em seguida, a personagem passa a receber uma sequência de prêmios sem realizar quaisquer esforços; eles simplesmente caem “gratuitamente” do céu, pulverizando as adversidades de seu status social e classe. E todos estes prêmios são adquiridos sem o menor desejo inicial de aquisição: nas primeiras vezes em que frequenta um baile funk, ela é selecionada para dançar no palco e vence o concurso de melhor dançarina[6]; o promoter da festa delicia-se tanto com essa ideia que lhe oferece a oportunidade de dançar na sua equipe por um salário mínimo por noite, três vezes por semana[7]; em outra ocasião, Conceição é apresentada ao presidente da escola de samba local e é imediatamente convidada a ser rainha de bateria[8], mesmo que jamais tenha frequentado a quadra ou aprendido a sambar (não há uma cena que represente sua ligação com o samba). Por isso que seu discurso de agradecimento pelo título de rainha é vazio, pois a personagem nada fez para conquistá-lo, apenas reforçar um mérito baseado na pura crença e na vaga esperança de ascensão social das classes mais baixas.

Nesse sentido, é interessante notar as referências adjacentes que reforçam essa mensagem. Ao receber o seu primeiro pagamento como dançarina de funk, Lourival toma o bolo de dinheiro de sua mão e o joga para o alto, simbolizando pouco apreço por algo que, incontestavelmente, é de suma importância para a sua família. Ademais, Vera e Mãe Bia hesitam mais de uma vez em aceitar uma parte do dinheiro quando Conceição o oferece em troca da moradia e da alimentação, o que seria logicamente aceitável, mas ambas agem como se não precisassem e não houvesse nenhum problema financeiro na família. A situação torna-se ainda mais estarrecedora quando Conceição desiste deste trabalho depois de ver o Cleiton no baile, dançando com Jéssica no meio da pista. Um salário muito mais elevado que o de profissões que requerem um nível universitário de estudos e, provavelmente, superior aos ganhos de toda a família de Vera, é logo abandonado por um motivo tão pequeno e fútil, como se outras chances logo estivessem a caminho. Em suma, essa postura parece contaminar os personagens, elevando-os acima dos problemas mundanos e retratando um desapego inverossímil acerca de suas necessidades[9].

Conceição desconhece seu mundo histórico-social e sua posição de classe e, por isso, atua como se a realidade à sua volta tivesse desvencilhado-se das contradições e dos conflitos imanentes à dominação e à subordinação. Depois de oficializada sua desistência como dançarina, Vera liga para o posto de gasolina a fim de ajudar a amiga a cobrar pelo serviço que não fora remunerado. Pelas cenas dedicadas a essa sequência, é possível afirmar que Conceição não trabalhou mais do que três dias, no máximo[10]. E quando Cleiton fica sabendo que ela está atrás do pagamento, ele reúne alguns dos bandidos e vai até lá para cobrar pessoalmente. Consumido pela raiva, ele chega ameaçando o ex-patrão, toma o dinheiro à força (um valor nitidamente mais alto do que ela teria direito), pisa no seu pulso para quebrá-lo e metralha a parede da sala, deixando-o transtornado. Em seguida, ele manda o seu amigo levar a quantia para Vera, que depois a entrega à Conceição. As duas se mostram amolecidas pelo seu gesto e, deslumbrada, Conceição parece iniciar o processo de remissão por ele tê-la estuprado. As cenas deixam nítido que a consciência de Conceição é frequentemente reforçada pelas estranhas noções de que é possível e certo a conquista de desejos sem o menor esforço (nem mesmo para fazer a ligação pessoalmente para o ex-patrão), culminando na deturpação de que sua situação é algo bom e positivo e, portanto, que não haveria forças sociais atuando para impedir a satisfação de suas vontades.

A posição de Cleiton na trama desvela outra faceta relevante. Sua mãe foi abandonada pelo pai ainda grávida e perdeu seu filho mais velho para o mundo do tráfico. Inconsolável por estas ausências, ela se torna alcoólatra e auto-destrutiva, esquecendo-se de que ainda tinha um filho. O resultado é uma relação fraca com Cleiton que o deixa fragilizado perante o chamado constante dos bandidos para a criminalidade. A violência permeia incessantemente os personagens, mas a série propõe uma visão de que se há amor e carinho entre os entes queridos, é possível apoiar-se uns nos outros e lutar contra o sedutor apelo do crime. Essas relações evidenciam a importância do seio familiar na constituição moral dos indivíduos, tanto que os filhos e netos de Mãe Bia e seu Aloysio “estão blindados” e sequer chegam perto de cruzar as fronteiras da criminalidade. Por outro lado, ilumina-se a entrada no mundo do crime como causa direta de uma decisão moral frente às outras, resultantes dos processos de dominação e exploração que criam condições miseráveis de existência, impedindo que esses indivíduos funcionem plenamente como seres humanos e não sigam outras opções para além do tráfico.

O estopim para o afundamento de Cleiton se dá quando ele perde o amor de Conceição depois do ato execrável da tentativa de estupro. Atormentado pela morte do irmão, ele fica sabendo que Tutuca, chefe do tráfico, fora o responsável pela sua dor. Em meio à tentativa de evitar se envolver com os bandidos, ele acaba se convencendo num delírio, onde as pessoas supostamente estavam lhe pedindo para matá-lo (e livrar a comunidade deste mal). Assim, os transtornos que estavam habitando a sua mente fizeram-no sucumbir diante do apelo dos criminosos. Suas definições de bom ou mau ou o que é possível ou não na existência humana deram lugar ao ímpeto e ao imediatismo da vingança. Após cumprir a sua missão, “não havia motivos” para continuar ao lado dos bandidos e não retornar à vida anterior, mas ele deixara-se seduzir pela sede de poder, tornando-se alguém igual ou pior do que os assassinos do seu irmão. Por esta sequência, Cleiton deu margem à uma violência pouco condizente segundo a sua construção de personagem. Como chefe do tráfico, ele passou a representar tudo que é oposto a uma noção de zelo e amor ao próximo presentes na família de Vera[11]. Isto posto, cumpre destacar que toda essa violência subjetiva perpetrada pelo protagonista aponta, novamente, para uma escolha baseada em uma decisão moral, ignorando-se a violência objetiva como uma das razões subjacentes para a infelicidade que se abateu sobre sua família.

No penúltimo episódio, o juiz lidera uma operação da polícia no baile funk para prender Cleiton. Em meio ao tiroteio, o juiz caminha tranquilamente, sem se importar ao seu redor, confiante de que não seria atingido por nenhum projétil. Ao ver que os bandidos começavam a cair mortos, ele dá gargalhadas histéricas, como se tivesse algum problema mental. Seria uma crítica de que a Justiça do país dá fortes risadas diante da guerra ao tráfico em sinal de desprezo pela sua função ou seria um indício de sua inépcia para lidar com o problema? No final, Cleiton é metralhado e deixado submerso no rio por vários minutos. Por sorte, ele se cura sozinho, fazendo com que a série adquira tons de sobrenaturalidade. Ao retornar, ele atribui ao evento um milagre de Deus, converte-se ao evangelismo e se torna um novo homem, renovado e regozijado pelo amor de Jesus. E feliz por ver o seu amado recuperado, Conceição aceita seu pedido de casamento e ambos terminam a história sob beijos e juras de amor. Este final não deixa de ser intrigante, pois a “prova de amor” de Cleiton fora simplesmente sobreviver? Ele teve oportunidade para abandonar o tráfico e/ou de não precisar matar todas aquelas pessoas, mesmo assim, Conceição foi capaz de perdoá-lo do crime de estupro e homicídio, mas uma pergunta permanece no ar: que etapa de provação é esta que para se mostrar digno de sua amada, um personagem revela-se mais desmerecedor de seu amor?

Para concluir, a série carrega toda a responsabilidade de uma tragédia à la brasileira, na qual desenrola-se uma narrativa que visou representar a condição da mulher negra e pobre em um dos países mais violentos do mundo, onde o racismo e a misoginia encontram-se profundamente entranhando em suas abjetas raízes. O percurso da protagonista é marcado pelos tormentos sucessivos, passando pela violência ao corpo, pelo teste da vaidade, as tentativas de subversão da alma e a fragmentação do coração. Porém, esses preconceitos quase não foram trabalhados de modo crítico, chegando a parecer inexistentes na trama. A velocidade com que Conceição se recupera dos traumas e das dores que são passíveis de causar males profundos na alma chega a ser intrigante; e mesmo depois de recuperada, ela age como se nada tivesse acontecido. Neste ponto, a sociedade diegética vislumbrada pela série, em seu propósito mórbido de apresentar uma relação amorosa insólita (tanto para o lado positivo quanto o negativo), peca pela artificialidade com que expõe seus personagens e respectivas ações, esvaziando qualquer teor realista. De maneira geral, é como se eles vivessem em um mundo paralelo. O jogo capitalista é retratado consensualmente, onde não existem contradições e dificuldades que os pobres e as mulheres negras, frequentemente, têm de enfrentar, salvo pelos crimes sexuais. Por fim, observou-se uma preponderância da sorte como elemento que oculta a realidade histórico-social e as causas das desigualdades e apresenta uma crença na ascensão social e nas transformações materiais na vida dos indivíduos pautada pela fé e na “salvação” proporcionada pelas vontades divinas.

[1] Segundo o Omelete. Disponível em: https://bit.ly/38cz4K5.

[2] A trama e as curiosidades estão no Memória Globo, disponível em: http://glo.bo/3LDaIHX.

[3] Ironicamente, a música se chama “It’s Automatic”, do Freestyle, como se quisesse simbolizar o efeito “automático de sedução” que Jéssica causa nos homens ao passar nas ruas e dançar no baile.

[4] Para uma descrição detalhada, era aniversário de Cleiton e Conceição aceitara seu convite para comemorarem em um motel, mas ela havia deixado claro as suas intenções de se manter virgem até o casamento. Depois de um tempo, embriagado, ele tentou forçá-la a tirar a roupa na banheira de hidromassagem. Vendo que sua namorada oferecia resistência, acreditou que se tratava de um sinal verde e a arremessou na cama, pulou por cima dela e começou a arrancar o seu sutiã e a sua calcinha, enquanto ela gritava de desespero. Por sorte, ela conseguiu acertá-lo e ele caiu ao chão, dando tempo suficiente para que ela vestisse uma calça e saísse seminua, correndo pelas ruas. Antes de chegar em casa, ela o confrontou, dizendo que isso não era amor. Porém, aos berros, ele respondeu que era amor sim. A família testemunhou o estado lastimável de Conceição e os homens pressionaram Cleiton para confessar o que havia acontecido. Vendo que ele receava em falar, ela interveio e o defendeu, inventando uma história de que tinham sido atacados.

[5] Apesar de Sylvia explorar a menina como empregada doméstica e, possivelmente, sem lhe pagar um salário, o que não deve ser consentido como algo viável, ao menos, até ela sofrer a tentativa de estupro, sua moradia era uma alternativa menos aterradora entre outros possíveis destinos.

[6] Os telespectadores ficam sabendo posteriormente que o namorado de Jéssica é o atual chefe do tráfico local e que ele ameaça de morte o promoter se ele não retirar a faixa de Conceição. Em outro dia, ele desobedece a ordem, porém nada acontece (o chefe só morre muito tempo depois).

[7] O valor do salário mínimo no ano da série era de R$622,00. Com os três bailes semanais, ela iria faturar mais de 1800 reais por semana, dando uma média de 7400 reais por mês.

[8] Ademais, uma vez que ela aceitou o convite de ser a rainha de bateria, o presidente da escola de samba, como um gesto de agradecimento, ainda pagou por toda a sua cerimônia de casamento.

[9] A Mãe Bia e Vera abriram as portas da casa para Conceição por amor ao próximo, compaixão pela sua situação de vida e uma enorme generosidade. Elas nunca cobraram por esse favor e nunca mostraram qualquer intenção. Logo, a crítica não é por elas terem recusado o dinheiro, mas pelas razões e o modo como o fizeram.

[10] Curiosamente, Vera ainda fala ao telefone que quer os direitos, como o décimo terceiro, férias e etc., mas pelas cenas, Conceição trabalhara apenas dois ou três dias ou uma semana, no máximo.

[11] Entre os exemplos, há o grande consumo de bebida alcoólica, um comportamento gratuitamente violento e impiedoso, a soberba como novo chefe do tráfico, a perdição para a luxúria e o apego excessivo aos bens materiais, ao dinheiro e às práticas hedonistas do sexo.

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