
O seriado Homeland: segurança nacional (2011) foi ao ar nos Estados Unidos da América no dia 2 de outubro de 2011, pela emissora Showtime, do grupo CBS Corporation. Sua primeira temporada é constituída por 12 episódios e foi desenvolvida por Howard Gordon e Alex Gansa, sendo baseado na série israelense Hatufim, criada por Gideon Raff. Foi filmado em Charlotte, Carolina do Norte, por ter sido oferecido melhores incentivos fiscais e por ser bastante parecida com a cidade onde a história se passa, Washington, DC. A temática do seriado reflete as aflições e receios do Ocidente em relação aos problemas globais, políticos e econômicos do Oriente Médio, em um mundo pós 11 de Setembro. A iminência de um novo ataque terrorista em solo americano dirige o comportamento dos personagens e transparece os sentimentos do público norte-americano como um todo. Assim, levando-se em conta o imaginário sociocultural e a proposta idealizada pelos seus criadores, Homeland nos pareceu, a princípio, um produto audiovisual de qualidade. O público correspondeu às expectativas e seu impacto foi bastante produtivo[1]. Somam-se a isso os prêmios recebidos e a crítica positiva[2] acerca do primeiro episódio.
A história é sobre Carrie Mathison (Claire Danes), uma oficial da Agência Central de Inteligência (CIA – do inglês Central of Intelligence Agency), que em uma investigação no Iraque consegue de um homem, prestes a ser executado pela Al-Qaeda, uma informação importante sobre um soldado americano que teria se convertido para o lado terrorista. Sem quaisquer pistas sobre um militar que estivesse vivo em território inimigo, ela retorna para os EUA. Contudo, dez meses depois, David Estes (David Harewood), diretor do Centro Contraterrorista da CIA, a convoca para uma reunião e informa aos agentes da CIA que Nicholas Brody (Damian Lewis), um sargento do corpo de Fuzileiros Navais desaparecido desde 2003, havia sido resgatado pelas tropas americanas. Então, ao contar para Saul Berenson (Mandy Patinkin), chefe da divisão do Oriente Médio na CIA, o que ouvira no Iraque, Carrie passa a acreditar veementemente que Brody é o soldado de quem sua fonte falara. Por outro lado, respeitáveis figuras do governo federal e do Exército e Marinha, além do seu próprio chefe (Estes), consideram o sargento um herói americano, preparando um terreno para diversos embates. Nesse sentido, ainda sem superar totalmente a tragédia em Nova York de dez anos antes, Carrie resolve empenhar todas as suas forças para impedir outro ataque em solo americano e provar que Brody está, de fato, trabalhando para Abu Nazir (Navid Negahban), chefe da Al-Qaeda e terrorista mais procurado do mundo.
Há algo estranho em Homeland, e não é sua estrutura dramática, tampouco a sucessão mal elaborada de eventos e ações realizadas pelos personagens. Através de seus episódios, somos postos diante de inúmeras situações implausíveis, improváveis e até mesmo impossíveis. Como a temática, por si só, expressa o interesse (e, de certa forma, também o preconceito) do público norte-americano perante as relações de seu país com o Oriente Médio, seus criadores tinham um arsenal de ferramentas valiosas para explicá-las, mas não foram bem-sucedidos. Algumas raras cenas suscitam tensão, porém são posteriormente substituídas, a fim de sustentarem uma dramaticidade plástica e artificial. No entanto, entendemos os motivos que levaram o público a aceitar o seriado; ele contém muitos elementos cativantes e capazes de elevar os brios do povo norte-americano.
Pelo contexto sócio-histórico do momento em que o seriado vai ao ar e pelo tema proposto, podemos apontar para a violenta revolta emergida na Síria, no início do mesmo ano, 2011. Este conflito interno, iniciado por protestos populares de grupos pró-democráticos, em janeiro, encontrou nas forças do governo de Bashar Al-Assad um grande desafio para a libertação nacional do país. Após inúmeras incursões e mortes de milhares de pessoas, a maioria civis, a guerra passou por uma transformação e formou novos opositores e aliados, passando também a abranger causas relativas à religião e à intolerância. Em novembro daquele ano, portanto 10 meses depois de seu início, navios russos de guerra se aproximaram das águas sírias, assinalando o apoio da Rússia ao governo de Al-Assad e evitando quaisquer intervenções do Ocidente (KHOURY; HAARETEZ, 2011).
Entrementes, o apoio norte-americano à oposição ao governo sírio já ocorria desde 2006 e foi revelado no escândalo do Wikileaks, através de telegramas (ZAGORIN, 2006), mais tarde sendo assumido também pelo governo de Barack Obama (U.S…, 2011). Desde então, os EUA contribuem para a guerra, opondo-se aos rebeldes moderados e ao governo de Bashar Al-Assad. A Síria, hoje, é um terreno concebido pelas ideias de emancipação política e libertação por parte dos diretamente envolvidos nos conflitos, e indiretamente pelos interesses político-econômicos das potências mundiais, Rússia e Estados Unidos. A guerra não se resume mais em aliados ou opositores ao regime de Al-Assad; ela ganhou novas dimensões, até então, imprevisíveis. Em um artigo da BBC News, um mapa explica a presença dos grupos no local e suas referidas influências (SYRIA…, 2016). Em 2011, porém, no lançamento do seriado, o Estado Islâmico ainda não tinha se autoproclamado um califado islâmico, embora suas atividades já ocorressem em aliança com a Al-Qaeda, sendo esta desmanchada apenas em 2014 (SLY, 2014). É sobre esta segunda organização fundamentalista, especificamente, e seu líder fictício, Abu Nazir, que Carrie e Saul investigam e tentam desvendar seus passos.
Dado o contexto histórico-social dos conflitos no qual o Iraque[3] participa, passemos efetivamente à análise formal ou discursiva. Nossa crítica separou três questões principais acerca da ideologia expressa no seriado. O primeiro e mais perceptível modo de operação da ideologia em Homeland é o da dissimulação. Aliás, detectamos uma dupla-dissimulação: o fato de a CIA ser representada como uma instituição quase que completamente inexperiente e despreparada, frente a suprema e impecável habilidade dos terroristas para levar adiante seus planos. Numerosas cenas suscitam essa ideia, reforçando a incompetência e a falta de organização e confiança em seus próprios agentes: primeiramente, Carrie não tem o perfil de uma agente da CIA, suas atitudes e comportamento não condizem com seu ofício e a confiança depositada em sua posição. Além disso, ela toma um antipsicótico (Clozapina)[4] para tratamento de indivíduos portadores de transtornos mentais graves, sem receita médica, desde o início da vida adulta (ela consegue os comprimidos com sua irmã), portanto, seria reprovada nos testes psicológicos, psicotécnicos e de urina promovidos por quaisquer instituições dessa seriedade e natureza[5]. No trabalho, ela também quase nunca é levada a sério, o diretor David Estes constantemente a repreende na frente dos outros, chegando a gritar quando ela o contraria em uma reunião; o mesmo diretor, após um apelo de Nicholas Brody, deixa-o se encontrar face a face com seu torturador árabe (o que é implausível, para não atrapalhar o andamento das negociações); depois, o mesmo torturador se suicida ao cortar seu pulso esquerdo com uma lâmina de barbear, em uma sala pequena, monitorada por câmeras e seguranças, e ninguém prestara socorro quando o viu desmaiar (sem essa testemunha, a instituição perde pistas importantes, comprometendo a investigação). Há outras cenas, porém menos significativas que, dentro de um contexto geral, retratam direta e indiretamente a ineficácia, inaptidão e incompetência da CIA para lidar com seus problemas. Logo, defendemos que uma vez retratada com todos esses defeitos e incompetências, quando os telespectadores são postos diante dos planos e ações do grupo terrorista, eles se tornam poderosamente mais qualificados, organizados e eficientes, isto é, dignos de um legítimo apoio popular para que o governo norte-americano continue empregando suas inúmeras campanhas militares voltadas para o “extermínio terrorista”.
Em outras palavras, frente a todo esse despreparo da instituição de investigação e inteligência, as ações de Abu Nazir e seus comparsas nos parece mais bem orquestradas e planejadas. Em apenas um momento ao longo da primeira temporada o plano dos terroristas aparentou ter sido frustrado pela CIA. Foi quando Al-Zahrani (Ramsey Faragallah), diplomata a serviço do líder da Al-Qaeda, foi chantageado por Carrie e Saul em troca de informações. No entanto, no dia seguinte, ele conseguiu, às pressas, formar um plano com Tom Walker (Chris Chalk) e explodir uma maleta em plena praça pública, ferindo e matando diversas pessoas. O recado é dado de forma expressa e imediata: se os norte-americanos incomodarem os terroristas, estejam preparados, pois a vingança será veloz e eficaz. O antagonismo CIA x Terroristas, no seriado, revela traços obscuros do imaginário sociocultural norte-americano, como o medo de outro ataque em território nacional e a necessidade da formação de heróis[6]. A impressão dos terroristas de estarem sempre “dois passos” à frente da CIA, aliada às representações dos seus ideais “distorcidos” sobre o Ocidente, aponta também para uma estratégia da racionalização, na tentativa de defender e justificar as medidas que vêm sendo adotadas pelo governo americano, isto é, a “inevitabilidade” dos instrumentos militares utilizados para o combate ao terror.
O segundo modo de operação observado, a legitimação, atua conjuntamente com o da unificação. As relações de gênero são apresentadas de forma a sustentar e justificar a submissão feminina. Aliás, ao longo dos episódios, percebemos que, invariavelmente, todas as personagens femininas são retratadas como indecisas, instáveis ou totalmente dependentes dos respectivos homens que as cercam. Segundo Hank Stuever, crítico do The Washington Post, “o que faz Homeland se elevar acima de outros dramas pós-11/09 é o desempenho estelar de [Claire] Danes como Carrie – facilmente a personagem feminina mais forte desta temporada”[7]. Todavia, nossa análise aponta para o exato oposto. Mesmo ocupando um importante cargo, do qual se espera uma alta dose de responsabilidade e racionalidade, não é o que observamos em sua imagem ou pelos seus atos. Logo no primeiro episódio, David Estes e Saul Berenson conversam sobre ela. O primeiro reclama de seu temperamento, enquanto o segundo diz estar “babysitting”[8]. Aliás, como dito anteriormente, este vive recriminando-a, inclusive na frente de outros colegas de trabalho. Esse comportamento por parte de seus superiores nos pareceu implausível, pois se essa é a relação diária entre eles no ambiente de trabalho, é inexplicável que ela tenha sido contratada ou que seja tão “eficiente” ou que trabalhe na mesma função por pelo menos dez anos. Em outra cena, bastante dispensável, quando Saul descobre que ela havia colocado câmeras e microfones na casa de Nicholas Brody, ele diz que ela deve procurar um advogado, pois está encrencada. Sem saída, Carrie se insinua sexualmente para seu chefe, com quem convive há mais de uma década e foi, inclusive, responsável por treiná-la. Esses dois momentos não condizem com o ethos[9] e o comportamento esperado de uma oficial dessa instituição.
Entretanto, o ponto máximo na reprodução das relações de dominação envolvendo sua personagem é quando ela se apaixona por Brody, o homem que está investigando. No sexto episódio, Carrie o encontra em um bar. Os dois conversam e ela lhe revela traços de sua personalidade à medida que bebem doses de Bourbon. No estacionamento, visivelmente alcoolizada, ela revela o motivo do teste do polígrafo que seria aplicado em Brody nos próximos dias (iriam perguntá-lo se fora ele quem entregara uma lâmina de barbear ao terrorista torturador capturado, Afsal Hamid). Em seguida, entram no carro e fazem sexo. A displicência e o desleixo de Carrie não podem ser explicados pelos seus sentimentos; o fato de estar apaixonada não seria suficiente para ela ter dificuldades para resisti-lo, pelo menos a princípio. A irresponsabilidade com que age, prejudicando o resultado do polígrafo, é mais um traço perceptível dessa reprodução que põe a mulher em uma posição frágil, emocional e submissa ao homem, sendo vergonhosamente capaz de estragar os planos da CIA, a quem deve a máxima dedicação, responsabilidade e disciplina, e tudo por causa de uma “paixão incontrolável”.
Após o teste do polígrafo, mesmo sem indicação alguma de ele ter mentido, Carrie continua sustentando que Brody é, de fato, o soldado convertido pela Al-Qaeda; porém, aceita uma carona e os dois vão parar num sítio no interior. Dois dias se passam e, de manhã, Carrie comenta, sem querer, não ter o chá que ele toma (Yorkshire Gold). Ele a põe contra a parede e se irrita quando descobre que foi investigado e filmado em sua casa. Mas num gesto calculista, ele põe a arma sobre a mesa, senta-se e lhe pede que pergunte qualquer coisa. Assim, em meio a respostas dúbias, confusas e mentirosas, principalmente com o telefonema de Saul dizendo que Tom Walker está vivo (e “se trata do soldado convertido”), Brody consegue manter Carrie sob seu controle. Ela lhe pede desculpas, mas ele parte, deixando-a sozinha. O domínio dele nessa complicada relação fica mais evidente quando ela lhe telefona no décimo primeiro episódio pedindo informações pessoais sobre Abu Nazir, mas Brody a entrega para a CIA, revelando a vigilância ilegal em sua residência e o relacionamento amoroso dos dois. Por consequência, David Estes invade a residência de Carrie junto com outros oficiais, já devidamente decidido a afastá-la do cargo e a confiscar todos os documentos de anos de trabalho sobre Abu Nazir, além de outros objetos que possam incriminá-la. Ora, é plausível que o diretor do Centro Contraterrorista da CIA conduza esse procedimento e tome decisões tão importantes apenas baseando-se em um telefonema, sem providência de quaisquer provas e desconfiando de sua agente, cuja ficha se manteve limpa por dez anos? Nessa cena, Carrie perde completamente o seu lado racional e age como uma mulher psicótica e descontrolada (ela havia parado de tomar a Clozapina há algum tempo). Desse modo, ao nos questionarmos sobre a “superioridade” da palavra de Brody e a parcialidade e a velocidade com que Estes comandou essa operação (sem consultar Carrie sobre a veracidade da acusação), nos leva a defender que a oficial da CIA situa-se num patamar inferior ao que seu trabalho condiz[10], sendo indigna da confiança dos homens ao seu redor. Inclusive, Saul Berenson, que nos pareceu o homem mais sensato do seriado, também não interveio, tampouco foi defendê-la. No final, mesmo Brody tendo sido o responsável por arruinar sua carreira, sua moral, seus sentimentos e humilhá-la no ambiente de trabalho (talvez sem chances de recuperá-lo), ainda assim é ela quem lhe pede desculpas e sofre pela indiferença dele.
Entre as outras personagens femininas podemos destacar Jessica Brody. Ao receber a notícia de que seu marido está vivo, ela vê sua relação com Mike Faber se dissipar, pois algo a compele a voltar para seu esposo e retomar o casamento do ponto onde pararam. Contudo, eles parecem estranhos um ao outro, não há amor, não há carinho, a impressão é que são forçados a isso. Curiosamente, Nicholas pouco ou nada faz para salvar seu casamento, relegando à sua esposa todas as responsabilidades para isso. Ela manteve a casa do mesmo jeito de quando ele partira; depois, vendo que o relacionamento dos dois não melhorava, cortou seu cabelo da mesma forma de quando ele a deixou. Em uma discussão com Helen Walker (Afton Williamson), esposa de Tom Walker, Jessica afirma ter errado por ter esperado apenas seis anos pela volta dele (e não oito anos, como Helen fez, cuja atitude é destacada como um ponto positivo e respeitável). Além de tudo isso, quando ela finalmente descobre que o marido ainda fez sexo com Carrie, ela o perdoa imediatamente. Tudo isso nos leva a destacar a forma submissa como a personagem foi construída. Por que ela se considera culpada de “traição” mesmo tendo esperado seis anos? Por que, apesar de não haver mais sentimentos profundos entre ambos, eles continuam se autodilacerando emocionalmente? Mike ainda insiste para Jessica considerar um futuro com ele, mas ela está decidida, nada irá tirá-la do caminho de reconstituir sua família. Jessica, portanto, é representada como uma mulher recatada, educada para servir ao marido e cuidar dos filhos. Temos pouco acesso aos seus atributos profissionais e/ou sociais, mas quando faz requisições ao marido, coloca-se sempre em uma posição de esposa preocupada com sua família e inferior a ele, nunca como uma mulher independente e realizada.
O terceiro modo de operação detectado é o da fragmentação. O personagem de Nicholas Brody é dúbio, instável e desinteressante. Em muitos momentos, não cremos no fato de que passara oito anos distante de sua esposa e filhos, tampouco enfrentado as experiências impostas pelos terroristas. Suas atitudes aparentam surgir de causas randômicas, arbitrárias e sem sentido. Brody não alavanca a trama, ele age apenas por reatividade[11]. Quando a bomba americana explode, matando o jovem Issa Nazir a caminho da escola, suspeitamos se tratar de uma crítica à política norte-americana no combate à Al-Qaeda. No entanto, as cenas seguintes desmistificam essa hipótese e apontam para o uso das estratégias de diferenciação e expurgo do outro. O líder terrorista é sempre representado como um sujeito frio, calculista e ardiloso. Quando vela seu filho, não é diferente; quem chora é Brody, pois ele é humano. Nazir é incapaz de chorar; assim, esse ideal construído para os terroristas no seriado não permite, portanto, se quer um traço de humanidade. E aquilo que não é humano, “tem o aval para ser exterminado como pragas”.
Em outro exemplo, no décimo primeiro episódio, Brody e sua família saem para jantar fora. Ao se aproximarem do restaurante, ele diz ter se esquecido das escovas de dente e combina de encontrá-los à mesa. Então, ele se desvia do caminho e entra numa loja de roupas, seguindo diretamente para uma sala no fundo, onde se encontra com um sinistro alfaiate, que o cumprimenta em árabe. Brody experimenta o colete-bomba e aprende como detoná-lo, enquanto discorre sobre o fato de sua cabeça ser arrancada do corpo e se manter intacta após a explosão, tudo com uma assustadora frieza. O sargento não demonstra qualquer abalo emocional ou psicológico, ele está “decidido” em sua missão. Aliás, por que se encontrar com o alfaiate justamente no momento em que está prestes a ter um jantar em família? Não haveria outro momento para isso? No entanto, temos ainda de indagar de onde vem tamanha vontade de vingança contra o governo norte-americano, quando bem próximo a ele estão sua esposa e filhos. A morte de Issa foi obviamente injusta, mas os anos de convivência em seu país de origem, as recordações de sua família e amigos, sua vida pré-cativeiro não seriam levados em conta? Afinal, se ele cumprisse a sua missão e fosse bem-sucedido, seu nome cairia na desgraça, sua família seria arruinada, sofreria preconceito, o que tornaria suas vidas nos Estados Unidos algo impraticável. Em Brody, não vemos se quer uma chance de arrependimento, apesar de, em cima da hora, sua filha o salvar, também por culpa de Carrie, que foi até sua casa alertá-los dos planos de vingança de seu pai.
Sobre as questões étnico-raciais, porventura, localiza-se uma das mais importantes reproduções das relações de dominação de todo o seriado, uma vez que abarca as questões abordadas anteriormente, além do preconceito racial. Brody e Walker foram capturados juntos pelos combatentes da Al-Qaeda no Iraque. Como os planos de Abu Nazir para Walker eram outros, manteve-o vivo (escondido de Brody) e os dois tomaram rumos diferentes. Brody deixou se fazer resgatado, voltou para seu país e se tornou herói nacional; aproximou-se dos filhos e da esposa, reconstituindo sua família; fez aparições na televisão; foi convidado pelo vice-presidente a concorrer nas eleições para deputado; enfim, recebeu todas as regalias necessárias para ocultar suas reais intenções. Entretanto, Walker retorna aos Estados Unidos[12] por debaixo das sombras, pela porta dos fundos, sem direito a se reencontrar com sua família. Ademais, em todas as cenas sua expressão facial é de revolta e fúria, enquanto Brody é calmo, sorri e age racionalmente. Aliás, se o ataque que vitimara Issa Nazir motivou Brody para a missão, o que teria motivado Walker para essa vingança irracional ao seu país? Se ambos foram convertidos com sucesso por Abu Nazir, mesmo com tratamento diferenciado[13], por que o soldado branco teria todas essas regalias e o negro não? Por que privar Walker de bancar o herói ao lado do amigo enquanto aguarda o momento de completar a sua parte na missão[14]?
Em meio a algumas parcas explicações no último episódio, surgem mais dúvidas do que respostas. As ações desencadeadas por esses dois personagens deixam transparecer um manancial de estratégias, como o deslocamento, a eufemização, a simbolização da unidade, a diferenciação, o expurgo do outro e a naturalização. Walker, do alto de um prédio, atira na amiga do vice-presidente americano[15] e em outros seguranças, criando caos e fazendo com que todos corram para o esconderijo, onde Brody acionaria a bomba e mataria a todos. Prestes a apertar o botão, sua filha, Dana, liga para seu celular e ele desiste da missão. Mais tarde, quando se encontra com Walker, defende-se afirmando que o colete não funcionou, mas que isso pode ter sido “uma coisa positiva”, pois as relações recém adquiridas com o futuro presidente dos EUA são mais importantes (por que não chegou a essa conclusão anteriormente, poupando todo o trabalho da missão?). Abu Nazir fala com Brody e aceita seu novo plano, mas ele teria de provar ser “confiável” novamente. Em seguida, o sargento norte-americano, então, dá um tiro na cabeça de Walker e conclui-se o máximo absurdo: Nazir pedira ao soldado que o “traiu” para exterminar aquele que lhe fora fiel o tempo todo. Por esse conjunto de elementos, defendemos que a ideologia expressa no seriado, portanto, sugere uma sustentação das relações de dominação étnicas: um branco consegue colocar a racionalidade acima de tudo e tomar sempre a decisão correta (abortar a missão), recebendo como prêmio o amor de sua família e de sua pátria; enquanto um negro, representado como desequilibrado, inconsequente e instável (porém obediente e fiel) tem como presente do destino uma morte covarde em um duto de esgoto, sem direito a méritos ou mesmo a um digno funeral.
Para concluir, nessa análise, expusemos a reprodução ideológica das relações de dominação contidas no seriado Homeland: Segurança Nacional (2011). Mais especificamente, pretendemos demonstrar que a CIA, através de seus diretores e oficiais, é retratada como uma instituição confusa, despreparada, incompetente; salientando, com isso, a organização, a eficiência e o poderio dos combatentes terroristas da Al-Qaeda, em prol de uma formação imagética concreta de um inimigo que necessita ser “exterminado” a qualquer custo. Em outros pontos, interpretamos as formas simbólicas e tecemos críticas, pois acreditamos que conforme fora estruturada dramaticamente, o seriado ressaltou e corroborou com pontos importantes acerca dessa reprodução. A inverossimilhança e a implausibilidade nas tantas cenas que analisamos, destacam aspectos propositais de sustentação da trama e de um suspense plástico e pueril. Percebemos também problemas étnico-raciais e de gênero, posicionando mulheres, negros e árabes em planos inferiores perante os demais personagens brancos e homens, reforçando e ratificando essas relações de dominação. Por último, apontamos para estratégias que unificam os terroristas dentro de uma só esfera, transformando a guerra ao terror em algo legítimo e digno da obtenção de respaldo público que, em vez de interesses universais voltados para o bem-estar da população, serve a propósitos políticos particulares, de uma elite dominante.
Em consequência disso, defendemos a importância de um olhar crítico sobre os produtos audiovisuais da grande mídia e suas formas simbólicas, afinal ao mesmo tempo em que ela nos fornece determinados modelos para seguirmos e agregarmos aos nossos próprios valores, devemos estar sempre atentos ao seu conteúdo. A reprodução ideológica é eficaz e viabiliza os mais variados símbolos e sentidos, cristalizando o imaginário sociocultural de uma sociedade e representando ideias que servem à manutenção da dominação. A realidade social é algo que atinge a todos, por isso a nossa enorme preocupação em conferir, analisar e desvelar como as inúmeras formas simbólicas são transmitidas pela grande mídia e em que contextos e propósitos elas são reproduzidas.
NOTAS:
[1] Homeland estreou sua sexta temporada em 15 de janeiro de 2017, ainda mantendo seu vigor do início.
[2] O primeiro episódio atingiu uma nota agregada de 92/100, baseado em 28 resenhas. Disponível em: https://bit.ly/2vPCyfm. Acesso em: 9 maio 2019.
[3] Em 2011, quando os conflitos cresceram a ponto de se tornar uma “guerra”, o Estado Islâmico mantinha relações com a Al-Qaeda e muitas bases de ambos os grupos extremistas estavam localizadas nesses dois países, Iraque e Síria.17 A Clozapina é indicada para pacientes com esquizofrenia resistentes ao tratamento, isto é, pacientes com esquizofrenia que não respondem ou são intolerantes a outros antipsicóticos. Disponível em: https://bit.ly/2PVcpEZ. Acesso em: 9 maio 2019.
[4] A Clozapina é indicada para pacientes com esquizofrenia resistentes ao tratamento, isto é, pacientes com esquizofrenia que não respondem ou são intolerantes a outros antipsicóticos. Disponível em: https://bit.ly/2PVcpEZ. Acesso em: 9 maio 2019.
[5] Entendemos que testes psicológicos e psicotécnicos (psychological exams) são aplicados em diversos processos e concursos para agentes da polícia municipal, estadual e federal, tanto no Brasil como nos Estados Unidos. Sendo a CIA uma instituição de inteligência e investigação de âmbito global, sustentamos que a mesma promoveria também esses testes. “O processo de contratação também inclui um exame médico físico e mental completo em relação à realização de funções de trabalho essenciais” (tradução nossa). Disponível em: https://bit.ly/1Xi6Pcm. Acesso em: 9 maio 2019.
[6] Sabemos da importância que os americanos dão aos seus militares, principalmente aos que combatem em solo estrangeiro e retornam depois de grandes feitos. A propaganda militar é pesada e Nicholas Brody, tendo se tornado “herói americano” após ser resgatado, é um perfeito exemplo da necessidade de criação de heróis na guerra contra o terror.
[7] No original: “What makes Homelandrise above other post-9/11 dramas is Danes’s stellar performance as Carrie — easily this season’s strongest female character”. Disponível em: https://wapo.st/300zA5o. Acesso em: 9 maio 2019.
[8] Babysitting, em inglês, é quando uma pessoa toma conta temporariamente de uma criança, por exemplo, quando os pais têm algum compromisso fora de casa. Geralmente, uma garota adolescente é chamada para a função em troca de uma quantia em dinheiro. Portanto, utilizar esse termo para uma mulher adulta é deveras pejorativo e humilhante.
[9] Traduzido do site da CIA, na área de aplicação de empregos: “Para salvaguardar algumas das informações mais sensíveis da nação, os oficiais da CIA devem ser altamente confiáveis. Guiados através de todos os aspectos do seu desempenho é o imperativo para aderir aos mais altos padrões de integridade”. Disponível em: https://bit.ly/1Xi6Pcm. Acesso em: 9 maio 2019.
[10] Apesar de Carrie, desde o início da temporada, apresentar traços psicóticos e ser representada como psicologicamente instável para o trabalho que desempenha, ela sempre esteve correta em suas desconfianças com relação a Nicholas Brody, tornando-a assim, uma profissional “eficiente”, de certa forma. Aliás, Carrie aparenta ser a única capaz de antever os movimentos dos terroristas – não há mais ninguém inteligente como ela, na CIA, capaz de decifrar os passos do inimigo?
[11] Entendemos, pelo final da temporada, que como Nicholas Brody estava realmente a mando do líder da Al-Qaeda, deveria ter ele mesmo procurado formas de colocar o plano em ação, visto que as situações pelas quais enfrentou, embora até “previsíveis” em certo sentido, não aconteceriam exatamente como planejado anteriormente por ele e Nazir. Portanto, ele é quem deveria ter proporcionado a trajetória que culminaria na resolução da missão.
[12] O retorno de Tom Walker permanece um mistério, pois mesmo sendo impossível sua entrada no país por meios legais (ele era um militar dado como morto), o que iria arruinar os planos dos terroristas, nos resta indagar os motivos que o levou a aceitar as regras dessa missão.
[13] Ao longo dos episódios, vemos que Abu Nazir trata Brody de forma diferenciada, tornando ele o professor de inglês de seu filho e deixando-o conviver livremente em sua residência, por exemplo. Por que Walker não poderia ser o professor de inglês? Que impedimentos ele tem para esse ofício?
[14] Se tomarmos como referência o tratamento dado ao Brody pelas autoridades políticas e militares americanas, isto é, colocando-o acima de qualquer suspeita (apenas Carrie desconfia dele), defendemos que Walker, recebendo o mesmo tratamento, teria chances superiores de levar adiante a missão sem quaisquer interrupções.
[15] Walker não atira diretamente no vice-presidente americano, isto seria parte da missão ou ele é incompetente?